Contemplo a maravilha
A doce madrugada de
Sodoma
Que os índios vão tomar
à mão armada
Aos uivos e vagidos
Por raiva e desafio
Ao berço e à dinastia
(Tite de Lemos – Sueli
Costa)
Uma reunião, mais de
duas dezenas de pessoas.
Aquele que me parecia
ser o esquerdista
consciente oficial do
local revolta-se contra
o processo de
proletarização que
estaria acontecendo com
“nós”, ali, funcionários
do Banco. Um cara
bacana, um cara
realmente profissional e
com bons argumentos. Mas
internamente a pergunta:
“será que esse cara tem
consciência de sua
consciência de classe?”.
Vivemos o mais estranho
dos tempos – e não falo
da Covid.
Vivemos numa época de
transição entre algo que
se chamou capitalismo e
algo que ainda não
sabemos o que é
–
que sequer ainda tem
nome. Os sintomas disso
estão, por exemplo, na
eleição americana recém-acontecida:
de um lado o
trambiqueiro Trump, que
capturou a imaginação e
a revolta de uma
burguesia de base local,
pessoas donas de seus
próprios negócios
submetidos à
concorrência devastadora
das plataformas e do
Walmart, base que é
majoritariamente do
Partido Republicano, mas
sempre massa de manobra
do grande capital, junto
com as pessoas crédulas
dos valores ditos
“tradicionais”; do
outro, um borg de
aparato intelectual,
capital financeiro,
meios de comunicação,
piagnoni
de
causas identitárias
liberais e plataformas.
Gente do
Partido Interno
como
a gente: melhores
escolas, melhores da
turma, melhores
práticas, melhores
salários, melhores
bairros das melhores
cidades, de um mundo
onde melhor=mérito.
Há uma luta de classes
acontecendo.
Entendê-la obriga a
olhar para hoje, sonhar
acordado o pesadelo
futuro.
Renda Básica Universal
associada a um
Sistema de Crédito
Social
é
o meu pesadelo. Nada
tenho contra a primeira
desde que você tenha um
país que basicamente
produz os bens-salário
que consome. Se eles
dependem do trabalho de
outro país, de alguma
forma há colonialismo
(termo que uso aqui com
muita liberalidade):
seja você a terra dos
poços e plantations,
seja você a terra dos
dólares e dos drones.
A segunda parte da
equação é o estado
policial gentil do
nudge (cuja versão
mais sofisticada é o
sistema de crédito
social chinês).
A instrumentalização de
nossas ciladas mentais
para nos levar ao “bom
caminho” (que por vezes
é até o bom caminho).
Qual o problema nisso?
Para começar, criar a
ilusão de culpa nas
pessoas de que sua vida
depende do seu mérito e
de suas ações – e não de
sorte e da estrutura da
própria sociedade.
Como vocês dos quais eu
já fiz parte se encaixam
nessa história – e como
isto se conecta com
nosso simpático colega
crítico da
proletarização?
Professional-Managerial
Class
–
basicamente gente com
credenciamento de nível
superior – é um conceito
interessante, mas um
conceito que a meu ver
tem o mesmo problema de
chamar de burguesia toda
a Paris que se insurgia
contra os Luíses. Há os
Bulshit Jobs do mundo
administrativo-jurídico-financeiro-gerencial,
vulgo nós. Há o trabalho
intelectual de
cientistas,
programadores, artistas
– aqueles que McKenzie
Wark chamou de hacker
class,
mas
serve de justificativa
para o pacote todo da
PMC contido no termo
Classe Criativa do
Richard Florida. E tem
um terceiro componente,
que são professores,
enfermeiros, médicos,
pessoas que explicaria
como as pessoas que
fazem um trabalho que
outrora era feito por
amigos, parentes e
criados no âmbito
doméstico, e por
instituições religiosas
no âmbito público. Todos
diplomados, todos
credenciados, mas rendas
e carreiras distintas.
Quando alguém reclama da
“proletarização”,
basicamente está
verbalizando que o seu
credenciamento lhe dá o
direito a uma espécie de
prisão especial
trabalhista. Qual seja:
não estou sujeito ao
tipo de subordinação que
um mero provedor de
trabalho/recebedor de
salário está. Seja o
médico sujeito às regras
e medidas de performance
de um plano de saúde –
com um rendimento
limitado
–,
seja um burocrata
sujeito à violação da
autonomia de seus
princípios técnicos. Os
professores? Esses já
estão ferrados faz
tempo.
A
ideologia impõe duas
cegueiras a este
fragmento da PMC que
somos nós. A primeira
delas é não entender
onde nossos interesses e
solidariedade de classe
se encontram com os de
outros membros dessa
elite que controla o
sistema com o mesmo
discurso técnico que
compartilhamos como
justificativa. Fazemos
isso de forma inocente,
imaculada. A segunda:
nós somos servidores
públicos concursados.
Realizar nosso trabalho
em função de nossa
qualificação técnica à
revelia do que é o
mandato político à que
devemos obedecer não é
um ato de resistência ou
um ato de luta de
classes: é uma traição
do interesse público em
favor de nosso interesse
privado (e das pessoas
de
nosso lado da cerca).
Tenhamos consciência
disso quando necessário.
Escapar para o manejo da
ética(eta) vigente
nestes anos recentes é a
forma canalha do
neoliberalismo desviar
atenção, de sermos
predadores camaradas.
#oleopardo #tudo #mude
#continue #omesmo,
agora com determinadas
diversidades
contempladas (e
sintomaticamente classe
e região, recortes do
exercício concreto da
hierarquia e da
política, banidos ou
esquecidos). O ideal
propagado é uma
sociedade redimida onde
índios e padres e
bichas, negros e
mulheres e adolescentes
exercem seus podres
poderes.
Mas o fato de que
estamos sob o pior
governo de nossa
história – que viola o
senso de dever
técnico-moral de
qualquer pessoa
realmente qualificada e
digna – torna isso
realmente complicado.
Mas temos que prestar
atenção que foram
exatamente
dois atos
de
extrapolar o seu mandato
por um par de
burocracias públicas que
nos
levaram
a essa situação.
Primeiro, os
procuradores que
conduziram o que se
vislumbra como a maior
violação de leis que
esse pais já conheceu, a
Lava Jato (a lei não se
faz de “justiça”, a lei
se faz com regras e
procedimentos). Depois,
o Exército que se
esforçou para fazer de
um dos seus presidente
pela via eleitoral, e
que pela quantidade de
pessoas da instituição
no Governo, é
corresponsável pela
desgraça que
atravessamos. E há o
Bando que Tomou o
Governo
–
as pessoas do mercado,
pelo mercado, para o
mercado, que estão com
Guedes. Essas também são
pessoas credenciadas,
aceitas nos cânones do
discurso econômico deste
país. Algumas pessoas
que estão lá desde o
governo golpista de
Temer.
Na
tempestade que se
avizinha, quando a
‘saddamnização’
do personagem que encena
a presidência (fosse eu
chargista, todas as
minhas charges de
Bolsonaro teriam uns
barbantes, como sendo
uma marionete, sendo um
deles caído no chão,
tipo apenas um dos cabos
tivesse partido) é um
dos cenários que pode
vir a afetar
negativamente o país, há
que se tomar cuidado
sobre a seletividade de
onde as críticas se
colocam, quais
instrumentos são
utilizados. Censuras
como as que estão sendo
implementadas pelas
plataformas nos EUA, por
exemplo, são
inadmissíveis.
“Eu
dou ao diabo o benefício
da lei...”
(o que quer dizer que os
crimes de Olavo contra a
filosofia escapam, os
contra a honra de
Caetano, não... e que
nossa colega possa
torrar quanto dinheiro
quiser na sua fé em
Allan dos Santos sem ser
submetida a dificuldades
e constrangimentos para
fazê-lo.)
Mas parte do
cancelamento que
poderemos ter tem
origens plenamente
justificáveis. Um
agronegócio que não leu
Equador; a parte de
bolsonaristas que não
são Bolsonaristas da
Turma do Guedes, que
passou dois anos
hostilizando a China (e
aí se incluem os filhos,
Udal, Carlos e Eduardo,
os quais não dá para se
demitir); uns militares
que sequer conduzir
algum tipo de restrição
ao movimento a sério, de
forma a achatar a curva
da pandemia, foram
capazes de fazer,
tornando-nos um dos
focos globais
da Covid
e alvo do ridículo
mundial: tudo isso são
razões de sobra. Razões
para restrição aos voos.
Razões para boicote à
soja, ao ferro, ao
petróleo. Vocês estão
sabendo dos boicotes que
a China fez à Austrália
por conta de 5G e da
empolgação deste membro
dos Five Eyes na
contenção estratégica de
seu mais central
parceiro comercial?
Já a lógica financista
dos Bolsonaristas da
Turma do Guedes, essa
explica outros
cancelamentos. O dos
investimentos. O dos
empregos de carteira
assinada.
Mas também explica
porque os militares têm
sido tão incompetentes
em executar o que é seu
papel na paz: agir em
emergências. Se o que
era Tesouro (Fazenda) e
o que era Orçamento
(Planejamento) está
debaixo de um mesmo
ministro, e se os
militares caem no conto
dos cortes daquilo que
não afeta o bolso de
suas pessoas físicas
(qual seja, preservem-se
as boquinhas e
cortem-se
as
rubricas de
investimento), é óbvio
que catástrofes como a
de Manaus vão acontecer.
Estar no poder significa
peitar os “babaquinhas”,
como bem os definiu
Mendonção, na hora que
for necessário. Mas
agora Inês é morta, bem
como a reputação do EB e
sabe-se lá quantas
pessoas foram e serão.
Um século depois da
Missão Francesa, a
“Missão Austro-húngara”
– meso-(neo)liberalismo
Monte Pelerin
desenfreado,
meso-obscurantismo Orban
– desconstrói o país e
as forças armadas,
qualificando-as
para um desempenho
austro-húngaro na
primeira grande guerra
do século XXI. “Missão
dada é missão cumprida”,
não é capitão?
Os
meses que vêm
serão muito complicados.
Cuidado com soluções
rápidas, cuidado em não
serem histéricos,
cuidado com as
encenações deste
Governo, dos deep
states daqui e de
fora, cuidado com as
plataformas. O banimento
do Parler pela Amazon
mostra o quão inseguro é
ter seus sistemas na mão
de outra empresa, de
outro governo. A
Clowd está morta
para quem não se acha
imune, e as soluções
financeiras de crypto
seguirão pelo mesmo
caminho no devido
momento.
Quanto ao atual governo,
repetindo a imagem que
já usei noutro artigo,
este país é um grande
Nakatomi Plaza sob o
controle de um pessoal
armado com propostas
absurdas. Não tenhamos
ilusão sobre para
o
que eles realmente estão
ali.
Mas agora não mais
Encouraçado nos meus
agasalhos
Nesta vaguíssima avenida
mas vendo um jogo de
futebol
Nesta lentíssima
espreguiçadeira
No seio desta tarde
confortável
da segunda semana de
janeiro, me despeço.
PS:
os colegas que quiserem
se comunicar comigo
podem, a partir de
agora, usar do meu
gmail para isso,
pmfalemdacarioca.
Membro do Gabinete do
Ócio, não contem comigo
para atividades
produtivas – mas estou
sempre aberto a trocar
ideias. E se me virem
chegar
ao
Banco sem ser de crocs,
ou é medalha ou cuidado!
Se estiver cantando
Bella ciao com uma
maçã na mão é porque me
tornei o signore
sinistro, um
jacobino imoderado no
papel de comissário do
PSOLTUdoB. Abraços!
PS adicional:
Quando escrevi ainda me
referia a atual
presidência de
República
como Governo e não como
Regime. Mas breve será
esse o termo que veremos
no NYT. A situação do
país é grave, a situação
do Banco justifica sua
inclusão no Acordo de
Paris. Mas isso é outra
história... |