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A vaca e o brejo, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco Economista aposentado do BNDES

surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.”
(Drummond)

Manhã de terça, chegando de uma incursão matinal à Caçula onde meus superpoderes de sexagenário não chegaram a ser necessários, o tablet me avisa que há um seminário ao vivo no BNDES. Começara fazia 50 minutos, falava o presidente Mercadante, mantenho em tempo real, vejo pingado entre idas e vindas de fazer os afazeres domésticos, não muito empolgado com o que o conjunto de palestrantes pregava. Paro para ver o presidente do Conselho de Administração, e eis que lá pelas tantas ele comete uma daquelas análises comparadas tão comuns:

“Se nós pegarmos a principal instituição de conhecimento na área do agro, ela fica na Holanda. Se nós combinarmos as exportações holandesas do agro – peso, valor –, dá uma relação dez vezes superiores às exportações de commodities de agro brasileiras. Então isso dá uma dimensão de como nós podemos incorporar valor numa di…”. Nesse momento, os Loa do ciberespaço deram um basta, congelaram temporariamente a transmissão (em 3:19:22… 3+19=22, 22=22, será encosto na rede do assentamento do primordial influencer reacionário, Olavo de Carvalho, astrólogo?).

Nosso agronegócio: “No horizonte aquela soja que não acaba (…) A cara do nelore no cordão de ouro”, como bem cantado por Bruno e Barretto. Esses versos trazem duas realidades essenciais sobre dois nichos relevantes que nosso agronegócio ocupa: grãos que são usados para ração animal (comida para vaca, porco e galinha) e carnes de animais adaptados às nossas condições climáticas. Já a Holanda, que uma década atrás ficava apenas atrás dos EUA em valor de exportações agrícolas (o que é surpreendente para um país tão pequeno), tem uma pauta bem distinta. Bem, para começar há que se levar em conta que eles não exportam só o que produzem (de quase 96 bilhões de euros em 2020, perto de 29% eram reexportados de outros lugares). Há que se considerar que os maiores consumidores são países vizinhos, como Alemanha, Bélgica, Inglaterra e França. Que se carnes são o segundo item em valor, o primeiro são plantas e flores! Qual seja, a Holanda é mais Holambra do que Matopiba. Suas vacas mais uruguaias e argentinas que as nossas.

A comparação não é uma comparação que procede. Não que melhorias tecnológicas não possam significar ganhos, mas o indicador escolhido pouco traduz o quão competitivo você é de fato.

Um dos problemas de você vender uma ideia a partir de um número é você entender o que é aquele processo traduzido no número. No momento em que números são fáceis de se obter e de se calcular, a tentação de uma comparação apressada dessas é grande.

Antes de avançar na questão da Holanda, talvez a versão mais… como posso dizer, na falta de outro termo… cretina que eu já ouvi de um argumento econômico totalmente equivocado dado por alguém que não entende o processo que se traduz num número (um preço, no caso), foi de um luminar da ciência nacional (nada de naming names) falando de um determinado fármaco extraído de uma planta na Amazônia que valia bazingalhões de dólares por grama. O que ele não percebia é que o que fazia o preço ser esse era uma relação jurídica chamada patente, e não alguma realidade natural. Tempo, poder, normas – tudo isso se entrelaça, podendo por vezes se tornar um número, uma razão.

Mas voltando à Holanda e ao seu agronegócio, muito provavelmente, amiga leitora, você leu por aí que o governo holandês caiu por conta de uma divisão interna da coalizão governante sobre a questão de imigração. Ouviu? Pois é. Essa é a “pedalada fiscal” que está sendo usada para justificar uma queda de governo que se deve mais a uma mudança de correlações políticas que traduzem dinâmicas de classe do que a problemas com imigrantes.

Um pequeno desvio: no meu tosco entendimento de economista sexagenário com cabeça de engenheiro, classe é algo que tem relação com o seu papel na produção material (seja esta física ou simbólica) da sociedade/mundo, e as relações jurídicas de propriedade nas quais se está inserido.

Mas voltando à Holanda, ao mesmo tempo em que é um país com um extraordinário agronegócio, é um país com uma posição comercial, financeira e de facilitação de evasão fiscal pelo mundo afora bastante relevante. Um país profundamente apostado no conjunto de regulações do mundo neoliberal. Nesse sentido, na intenção de atender a compromissos europeus relacionados à emissão de compostos de nitrogênio, o governo tomou a iniciativa de propor a compra e fechamento de fazendas, especialmente na parte de pecuária. E isso levou a uma articulação do campo, do território do campo, na forma de um partido que se contrapõe a isso. Para a Holanda mercantil, financeira, global, sacrificar esse território das vacas não é problema: eles terão comida e trabalho vindas de outra parte. Para o pessoal do campo desfeito, a história é outra. O carro alegre volta a atropelar, indiferente, o fim da história do mundo pós-industrial, “e o dia é um pasto azul que o gado reconquista”.

Nesta semana houve também um importante evento da OTAN, onde se decidiu que… fica tudo como está. Sim, a Suécia entrou finalmente… depois que o parlamento turco aprovar em algum momento ainda este ano (pois se este não aprovar, não rola). A Ucrânia entrará na aliança… depois de um processo não tão rápido assim, e isso depois que a guerra terminar. Mas o fato é que a munição está acabando, que a capacidade do Ocidente de abastecer de armas a Ucrânia está terminando. A guerra é um fenômeno do mundo material, mais do físico do que do simbólico. Há muito mais atolado na Ucrânia do que os beligerantes e seus aliados. Há a comida das vacas, porcos e galinhas, entre outras tantas coisas.

Ah, tem mais um detalhezinho conectando Holanda e Ucrânia. Uma daquelas coisinhas que a gente esquece, com tanta notícia complicada que há no mundo, tanta emergência. Lembram do MH-17, um avião da Malásia que foi derrubado na Ucrânia em 2014? A investigação apontou como culpados os separatistas de Donetsk. Os russos contestaram isso. Tendo em vista incidentes como o do Nordstream ou a destruição da represa que curiosamente removeu o lago que ficava em frente a uma usina nuclear que está sob posse dos russos (e que os ucranianos tentam sem sucesso retomar), há que se pensar duas vezes sobre o que de fato aconteceu neste acidente, Joe Biden então vice-presidente. A Holanda, que fez parte daquele simpático conjunto de países nomeado como Coalition of the Willing pelo governo Bush (aqueles que apoiaram a invasão americana do Iraque), foi quem assumiu o papel de investigar o caso. Para os que tiverem interesse numa interpretação alternativa, este post do John Helmer é um bom começo.

Semana que vem tento retornar à Ambição.


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