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Reencarnando o Time Vermelho, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!”
(Os Lusíadas, canto IV, 96)

Feliz coincidência! Eis que o que ficou faltando dizer na semana retrasada, ficou faltando dizer na semana em que o presidente pontificou na ONU, se alinha com o evento Seminário 4ª Revolução Industrial – Desafios para a Defesa, Segurança e o Desenvolvimento Nacional.

Venho com meu uniforme completo de time vermelho: estrela no peito, o velho livrinho do professor que guiou o campesinato na mão, e um chapéu MST/MAGA na cabeça. Mas como alvinegro, parte desses detalhes é um traje de fazer o papel de time opositor numa situação em que as pessoas, na minha nada modesta opinião, estão profundamente descoladas da realidade, seja por excesso de educação, seja por medo de encarar o futuro, seja por falta de imaginação, seja pela profunda estupidez que assola “pessoes” que se julgam inatacáveis.

Tentando não repetir o que já escrevi antes, o que está essencialmente errado no evento?

Basicamente, a história de tecnologia vinda do mundo militar para o mundo civil, um blábláblá que você leitora irá ouvir em qualquer evento deste tipo, é uma história do Estado usando de seu poder de concentrar recursos para desenvolver algo do seu interesse, algo que depois, eventualmente, será incorporado por outras esferas da vida. O professor Vinícius falou da transformação tecnológica dos canhões no século XIX. O que é interessante é que a experiência europeia em fabricar os sinos de bronze de suas catedrais e igrejas na Idade Média permitiu uma superioridade tecnológica inesperada desta periferia da Eurásia na fabricação de canhões. Europa: aquele pedaço da Eurásia onde Canossa aconteceu. No caso americano contemporâneo, apenas ao mundo militar é dada a capacidade de fazer gasto explícito, sem questionamento. Qual seja, não há nenhuma vantagem intrínseca ao mundo militar para a pesquisa fora da existência de um determinado consenso social naquela que, até recentemente, era incontestavelmente a maior potência mundial, um consenso que permite a essa esfera do estado realizar certas despesas sem maiores pressões ou sanções.

O erro, no entanto, não se restringe à lenda desistoricizada do spin-off. Em alguns momentos, raros momentos, a iniciativa de conceber e produzir um equipamento transformador do mundo militar partiu das empresas. A metralhadora, ao final do século XIX, foi um interessante caso desses. Mas se há um espaço mazzucatiano por excelência é o de concepção de requisitos e compras de armas. Sem uma especificação clara atendendo às doutrinas de emprego, às necessidades claramente definidas em função do que o outro lado dispõe em termos de meios e doutrina, um projeto tenderá a ser um erro. E não existe erro maior do que a “oportunidade de mercado”. No nosso caso, isso levou a uma série de projetos fracassados na década de oitenta, seja projetos bem-intencionados que não perceberam a mudança da arte da guerra (o AMX, que substituiria os Fiat G-91 – e talvez  alguns Skyhawks – como caças-bombardeiros em missões de suporte tático, tornou-se um avião supérfluo para quem já tinha adquirido F-16, desses mesmos F-16 que um dia a Ucrânia receberá), seja outros totalmente um negócio das Arábias, como o Osório. Ao contrário do que se acredita em boa parte da esquerda, exportação de armas não é uma forma de um país ganhar dinheiro, mas uma forma do país ter outros países que dependam dele. O ganho das empresas deve ser secundário em relação a isso, até porque, salvo raras exceções de moralidade duvidosa, as vendas de armas são financiadas pelos Estados produtores.

Mas o grosso do evento acabou indo para o campo da Ambição, a ideia de um protagonismo brasileiro nessa agenda dos ODS. Pois amiga, regra básica: se alguém defende que é necessário – três pontinhos – seu protagonismo, é porque essa pessoa, entidade, seja lá o que for, não tem e não terá protagonismo. A AP onde trabalhei na década de 10 vivia tentando ter “protagonismo” ao invés de entender o seu (muito necessário) papel subordinado, periférico, coadjuvante na condução dos negócios do Banco.

Talvez a mais interessante versão disso ali seja a ex-ministra Izabella Teixeira. Ao mesmo tempo que tem seus momentos de arrogância de pessoa que o tempo todo quer enfatizar que circula por gente muito importante, ao mesmo tempo ela traz alguns tópicos recentes, alguns momentos de necessária lucidez, algumas contradições que ela não chega propriamente a revelar. Do tipo lembrar o consumo de concreto da China, que neste século deve ter sido algumas vezes maior que o dos EUA em toda sua história. Concreto usa de energia para ser feito, o que provavelmente quer dizer que na conta de carbono que temos hoje há muito de China se desenvolvendo, e há muito no futuro de China com suas decisões de desenvolvimento cristalizadas.

O problema é que para andar no círculo de pessoas realmente importantes você não pode ter um pessimismo distinto do das pessoas importantes, nem ter descrédito do consenso delas. E se no caso da Izabella, ainda dá para se pescar alguma entrelinha interessante, o restante é de alunos obedientes.

E aqui volto ao time vermelho. Faço uma espécie de pre-mortem, o mais terrível dos pre-mortens que se possa pensar: como se fracassou sendo bem-sucedido em seus objetivos. O Brasil se torna protagonista da agenda climática. O Brasil se torna o pouso dos que fogem da desindustrialização europeia. A partir dos eventos diplomáticos que acontecerão no final desta década, nosso país lidera essa agenda. Seja de hoje até o final da década, seja depois, uma guerra direta entre Rússia e/ou China vs EUA/OTAN não aconteceu.

Usemos de nossa imaginação. O que é, politicamente, um mundo em que a Europa é desindustrializada em marcha forçada, com fuga de capital para lugares onde até o hidrogênio é mais verde? O capital trará seus alemães junto ou eles ficarão lá para estender seu finado welfare state ao excedente populacional de uma África que se desenvolve – e muita gente sobra quando você se desenvolve. Como ficam os compromissos desses estados quando seus eleitores resolverem que, ao invés do populismo de Laclau, Milei e Bukele sejam inspirações latino-americanas bem mais condizentes com a realidade imediata? Afinal, eles já não têm moeda soberana, meio caminho andado das propostas de Milei.

Peguemos o caso da China. O que quer dizer o consumo de tanto cimento em três anos (2011-2013) quanto os EUA em todo século XX, citado pela Conselheira Teixeira? Quer dizer uma economia chinesa com uma taxa brutal de formação de capital através de investimentos de infraestrutura (transporte, energia), de investimento das famílias e das empresas em imóveis urbanos. Por mais modernos que sejam, por mais adaptados às futuras intempéries (e eles são!), esses investimentos supõem um mundo que continua funcionando da forma como funciona hoje. E com crescimento econômico de fato. A China não ordenou o mercado eurasiano de hidrocarbonetos para melhor poder conduzir uma política de carbono-zero, uma versão diplomática da piada do inglês que foi caçar urso.

O que eu falei de Europa, espere mais breve nos EUA. Uma das coisas realmente patéticas no evento é a crença nas medidas econômicas do governo Biden. Realidade: a popularidade do governo caminha para abismos sem precedentes. O estado não funciona, o investimento de infraestrutura do passado, o “capital humano”, tudo isso está corroído, com prazo de validade vencido. A violência nas grandes cidades explode e 2024 caminha para ser um ano de ruptura no sentido mais literal que se possa pensar. Deal with it, paremos com a fantasia.

Faz o maior sentido o Brasil liderar essa agenda: tirando os burocratas globais envolvidos, seja os do mundo diplomático, seja os do sistema não governamental, ninguém mais vai estar interessado nela. Só nós, tudo correndo bem por aqui, estaremos levando isso adiante. E…

… estamos na década de 40. A estruturação de uma ordem internacional centrada na Ilha-Mundo vai de vento em popa. Dubai ocupa o lugar que foi um dia de Antuérpia, de Londres, de Nova Iorque, lugar onde o fluxo das dívidas circula, recicla, aposta, corrompe. A China saiu da crise que teria com o esgotamento de seu ritmo (a)celerado de investimento para, com os investimentos na África e na Iniciativa Cinturão e Rota, consolidar seu fornecimento de commodities na Ilha-Mundo. Quem sabe até relocalizou algo de sua produção de bens de consumo dos trabalhadores intensos em trabalho. Na Rússia e na África ela dispõe de praticamente todas as matérias-primas, alimentos, energia que precisar. E aí fica uma pergunta: e nós?

O Brasil nesse momento tornou-se uma nação irrelevante. O Ciclo das Commodities, mais um dos ciclos econômicos a serem ensinados nas aulas de história do futuro, como o da cana, o do ouro, o da borracha, o do café. Um momento de vantagem competitiva porteriana onde uma elite se deu bem, gozou da Paris da época, e ficamos por isso mesmo. Tirando breves momentos, o Brasil sempre foi globalizado. Neste sentido, Lula tenta democratizar e dar acesso a Orlando e a Shein para o maior número de nossos cidadãos. É louvável… e efêmero.

Tirando o período entre Getúlio e Geisel, por vontade própria ou por perdas internacionais, continuamos condenados à globalização. Não tarda ela prescindirá de nós, novamente; nós a nos tornarmos o imenso Portugal por fim.

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“Notas do Time Vermelho”, de autoria de Paulo Moreira Franco, publicado 24/01/2019.

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