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Peru Morre de Véspera, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES
Pode guardar seus truques. E daí se você me mostrar em uma escala maior? Vai continuar sendo apenas uma ilusão”.
(O problema dos três corpos)

Esta foi uma semana sob o signo da mesmice, da continuidade do que explodiu semanas antes, meses antes, anos antes. Acostumados com essas explosões, por vezes literais, seguimos.

Há uma ilusão na continuidade das coisas, uma ilusão de que as hipocrisias que regem nossa vida civilizada continuam válidas. Mas às vezes as vemos desmontar, às vezes vemos a nu o quem/para quem tomando o lugar do que/como, as identidades tribais tomando lugar da herança da ilustração.

Num certo sentido, a surpresa da eleição na Argentina se mostra presente. A identidade construída ao longo de décadas pelo peronismo fez com que, surpreendentemente, o moderado representante da versão moderada do peronismo fosse, moderadamente, o mais votado do primeiro turno. Isso surpreendeu num momento em que se esperava o super El Niño resultando numa enxurrada do Milei. Só que tem o segundo turno, e a candidata derrotada do establishment de direita não resolveu ir para Paris: ela declarou apoio a Milei. Um amigo me manda uma matéria na qual aparece um desenho fofo, infantil, com os animais símbolos de Bullrich (um pato) e Milei (um leão) abraçados. Ele comenta: “acho que existe alguma fábula sobre essas associações entre apex-predators e aves inofensivas”. Eu respondo: “no caso, CAPEX predator”. Sim, porque ninguém tenha dúvida que uma das consequências da implementação de qualquer meia medida sequer das propostas de Milei, seja a ruptura com a China, seja o fim da inflacionada moeda soberana argentina, resultará numa bela contração das inversões de capital na economia do país.

Mas na guerra contínua que se estabelece num ambiente de polarização populista, sintoma de que um monte de hipocrisias tribais toma o lugar das hipocrisias ilustradas, universais, as pessoas acabam esquecendo o quão movidas pela fé acabam sendo as ações humanas.

O que me faz lembrar uma pequena parábola que aparece tanto no Cisne Negro do Taleb:

Consider a turkey that is fed every day. Every single feeding will firm up the bird’s belief that it is the general rule of life to be fed every day by friendly members of the human race “looking out for its best interests,” as a politician would say. On the afternoon of the Wednesday before Thanksgiving, something unexpected will happen to the turkey. It will incur a revision of belief.”

…quanto no Problema dos Três Corpos:

A hipótese do criador de aves, por sua vez, tem um quê de história de terror. Todo dia de manhã, um criador de perus aparece para alimentar as aves. Um peru cientista, após observar esse padrão se repetir sem alterações durante quase um ano, faz a seguinte descoberta: “Todo dia de manhã, às onze, a comida chega”. Na manhã da véspera de Natal, o cientista anuncia essa lei para os demais perus. Porém, às onze da manhã desse dia, a comida não chega: o criador de perus aparece e mata todas as aves.”

Essa é uma boa fábula envolvendo um superpredador e uma inocente ave. Em ambas eu posso ler o ponto que o Taleb quer fazer, de que uma série histórica não quer dizer que a história irá se repetir. Imaginar a história requer estar atento ao fato de que ela se constrói de crises e rupturas, e por traz da Ciência Econômica há uma platônica, eleática noção de que a economia é equilíbrio.

O uso prático da Ciência Econômica, tal como se pratica na busca do retorno ao equilíbrio, às condições de estabilidade, acaba sendo um péssimo preditor do futuro. Lembrando Magalhães Pinto: “Política é como nuvem. Você olha e ela está de um jeito. Olha de novo e ela já mudou.” Economia é rio, é fluxo, transformação. Você entende a economia através de identidades, balanços, da forma das nuvens a cada momento. A história se desvela, 24 quadros por segundo, diante de nossos olhos, seja verdade ou mentira. Mas não conclui com a imagem parada de “foram felizes para sempre”.

A busca da estabilidade tem seu preço, e o governo Lula já começa a senti-lo nos seus índices de popularidade. E as consequências políticas se fazem presentes, com o Senado oferecendo uma derrota ao governo numa nomeação menor. Há um preço na afirmação narcísica que é a política de esquerda contemporânea, as novas hipocrisias nas quais ela se justifica, mas que, para a grande massa da população, são só um discurso alheio à sua realidade cotidiana e às suas perspectivas concretas, reis nus a desfilar. Isso resultou na derrota no Chile. Mas da falência precoce dessas hipocrisias eu trato noutro momento.

Retornemos à parábola do peru e a algo que escrevi en passant no artigo retrasado: há uma construção consciente de história como sendo esta da parábola do peru. A escatologia cristã pode ser entendida como Deus como o criador de aves e a humanidade como os perus. Talvez numa versão como a do perdão presidencial de um peru no dia de ação de graças americano. Mas o apocalipse vem, a história e a humanidade enquanto humanidade acabam, e felizes para sempre se torna uma realidade. Para alguns.

Netanyahu em seu discurso quarta sobre a invasão a ser feita em Gaza fez uma referência direta a Isaias. Um discurso que não foi feito propriamente para o público interno, mas para o outro público necessário a manter essa guerra: os americanos que acreditam que isso é instrumental para o second coming, sinal de que a rapture está próxima. Netanyahu é parça de um controverso “malafaia” americano, John Hagee, um daqueles personagens grotescos que não desaparece. Pelo contrário, ele hoje é bajulado por todos os lados entre os republicanos.

O meu amigo que realmente entende desse assunto guerra me mandou um extraordinário texto do Aurelien sobre o problema da invasão de Gaza. Texto perfeito, uma precisa análise clauzewitzeana da situação. Citando um pedaço para vocês refletirem sobre o que está sendo proposto para Gaza:

I can’t remember how many campaign plans I saw for Afghanistan which essentially consisted of the following steps:
Invade Afghanistan.
A military miracle happens.
Secure environment and the defeat of the Taliban.
A political miracle happens
Peace love and utopia

Qual o problema que reconheço no texto? Todo edifício de tékhne política e militar pressupõe atores da Ilustração, atores que ao fim e ao cabo compreendem o mundo pela razão. Clausewitz é um gigante contemporâneo a Hegel, criaturas de uma cultura em profunda trajetória filosófica. O problema é que quando as ações não seguem vontade sob leis da “ciência”, mas o próprio entendimento da realidade é mágico (não no sentido da submissão a uma inefável ordem dos céus, mas no sentido de que suas ações no mundo funcionam como ebós a realizar o plano divino), as premissas realistas foram abandonadas. E as profecias apocalípticas se realizam porque os homens concretamente às produzem achando que, na última hora, as legiões de anjos aparecerão para construir-lhes a vitória.

No meio disso tudo, esse governo razoável dessa pessoa razoável fazendo um governo razoável que é o do presidente Lula, tentou uma pausa para reflexão no meio desse conflito. Infrutífero. A política americana se guia numa ilusão. Já Israel cai naqueles que, como observa o Taleb, tem a compreensão da dinâmica do sistema cegada por suas preferências.

Os louvores do mallandro Netanyahu embalam nosso futuro.

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