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Crueldade no limiar do tsunami, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

I have made a list of these Seven Deadlier Sins which every reader will no doubt wish to amend, and these are my seven: Avarice, Cruelty, Snobbery, Hypocrisy, Self-righteousness, Moral Cowardice and Malice. If I were to put these modern seven into the scales against the ancient seven I cannot but feel that the weight of the former would bring the brass tray crashing down.

(Ian Fleming)

VÍNCULO 1568 – “Somente quando a maré se vai você descobre quem esteve nadando pelado”. Assim Warren Buffet descreve o desdobrar das crises. Nenhuma maré se compara à véspera de um tsunami, o momento em que toda a água desaparece, “como gotas em silêncio tão furioso”, e os encolhidos reis de bilau de fora se tornam tão claros na geografia que se forma antes da própria geografia ser violentamente recriada.

Minha intenção a princípio era tratar só da hipocrisia (e ela virá, mas não agora), com mais um romance de ficção científica de epígrafe (aguarde!). Mas a lista do Fleming abriu um leque maior, que não posso deixar de tratar.

Terceira semana de outubro, uma troca de mensagens com um dos mais afetuosos seres humanos que já conheci, alguém que toda a semana está em sua sinagoga:

“Estou infinitamente triste com toda essa dor e maldade explicitamente psicopática”

“Isso é uma constante da história. Não deixe isso destruir sua alegria.”

“Impossível. Você não tem ideia do que estou vendo e ouvindo e presenciando.”

Dez dias depois mando um vídeo do Gabor Maté, que a pessoa responde “mandei este vídeo para algumas pessoas que sei que têm familiares fundamentalistas!!” E me lembro de como Fofinha, no caminho da eleição de 2018, largou o grupo de WhatsApp da igreja à qual frequentava, por conta do nada católico discurso de ódio da maioria de bolsonaristas presentes.

Há um notável ensaio de Judith Shklar, uma ótima filósofa política do século XX, sobre como a questão da crueldade, um desses pecados capitais do Fleming, é central num entendimento político-moral liberal-democrático que tem sua gênese em Montaigne e Montesquieu, em oposição ao pragmatismo maquiavélico. Dessa percepção da crueldade, ela posteriormente construiu um entendimento da ordem liberal-democrática a partir de um ponto de vista negativo, de se evitar a crueldade e a injustiça (o mal), ao invés de uma construção positiva de se produzir o bem.

Essas duas pessoas em dificuldade com seus companheiros de religião legitimando a mais cruel violência são o exemplo disso. A crueldade foi a justificativa do grosso do intervencionismo americano após o Fim da HistóriaTM. R2P (Responsability To Protect), o princípio reconhecido pela própria ONU que justifica, tendo a crueldade por fundo, as intervenções humanitárias neste século. Vocês lembram da história dos bebês tirados das incubadoras pelo exército iraquiano que invadiu o Kuwait, marco zero da Nova Ordem Mundial? Isso moveu a opinião de muitos milhões de pessoas mundo afora (cínicos como eu estavam muito mais preocupados com o possível precedente de, na interpretação de Vestfália que rege nossas relações internacionais desde a segunda guerra, um estado ser totalmente anexado por outro sem sequer o pretexto de descolonização).

Como conciliar isso com o meio milhão de crianças mortas por conta das sanções econômicas às quais o Iraque foi submetido? Celebremente, Madeleine Albright, a então ministra das Relações Exteriores americanas, disse que isso foi um preço válido.

Se crueldade é um dos seus valores centrais, como justificar os bombardeios sobre a população civil em Gaza? Afinal, qual a agência que os milhares de civis sendo mortos, muitos deles crianças, têm sobre as ações militares que acontecem ao redor deles, abaixo deles, em nome deles?

Anos atrás, um não detalhado direito de resposta/combate ao terror era o bastante. De fevereiro de 22 para cá, no entanto, mudou. O fracasso das sanções do Ocidente contra a Rússia, o fracasso militar da Ucrânia, a ascensão da China ao posto de maior potência industrial do mundo, tudo se combinou a criar uma rebelião no Sul Global contra a “Ordem Baseada em Regras” dos americanos.

Um exemplo de crueldade deslegitimada são as sanções americanas a Cuba. E a votação na ONU demandando o fim das sanções tem alguns ângulos mais interessantes do que se observa a olho desatento. Os EUA obviamente votaram contra. Os dois países que dependem desesperadamente de auxílio militar americano (mas será que é só isso?) não votaram a favor: Israel votou contra, Ucrânia se absteve. O restante do mundo TODO votou contra as sanções.

Que o “progressista” governo Biden mantenha esse vestígio da guerra fria, com toda a Crueldade e a Maldade (malice) que isso implica, é uma contradição. E aqui, amiga leitora, eu deveria desembarcar na Hipocrisia. Mas vou me ater a uma ambiguidade da qual raramente damos conta, que pode ser até enquadrada no campo da hipocrisia. Onde termina um “Estado” e começa um “Governo”?

Quando falamos das ações dos EUA, estamos falando de um ente maior, quase abstrato, uma egrégora possuída por uma vontade própria? Estamos falando de um conjunto de burocracias e interesses econômicos que se coordena para produzir alguns resultados concretos dos quais algum córtex pré-frontal irá, posteriormente, produzir um discurso de coerência e intencionalidade? Estamos falando de um governo que a cada quatro anos troca (ou não) em função de uma eleição?

No fundo, a realidade concreta acaba sendo a última das hipóteses acima. Existem partidos, pessoas, que decidem coisas em governos, que têm seus motivos pessoais, suas sombras, seus interesses. Mas é preciso que aconteçam momentos de ruptura, momentos em que a história irrompe estabilidade adentro, para nos darmos conta disso. Quanto mais distantes dessa realidade cotidiana, seja porque trata-se de um país distante, seja porque de fato não façamos parte de um grupo com perspectiva concreta de participar do poder, mais tentados ficamos de ver algo grande, maior do que um mero governo, transitório governo de um fulano/partido político que foi eleito para aquele momento. (O que não quer dizer que, necessariamente, se esteja errado nessa visão mais abstrata.)

Pergunte-se então, leitora, num momento em que a Segunda Guerra Mundial é usada como metáfora a torto e a direito, quais governos hoje têm, na sua composição, partidos que são continuidade dos movimentos fascistas dos anos 20 e 30, ou que resgatam explicitamente essa ideologia?

Meloni? O Fratelli d’Italia, que hoje é o principal partido que governa a Itália, tem sua origem no MSI, um partido feito no pós-guerra pelos que apoiavam Mussolini. Orbán? Embora tanto o fascismo quanto a democracia iliberal tenham elementos de populismo e sejam perspectivas de direita, entendo como animais distintos.

Ninguém, no entanto, usa de simbologias do nazismo como a Ucrânia hoje. O evento onde um “herói de guerra” ucraniano foi aplaudido no parlamento canadense, para depois se perceber que se tratava de um voluntário de uma unidade das Waffen SS responsável por massacres de judeus e poloneses, foi só a gota d’água. Embora o Svoboda não esteja no governo, a presença de iconografia nazista no exército ucraniano é algo gritante. A celebração como heróis nacionais dos que se alinharam com os nazistas, também. Desnazificação, que é um dos objetivos russos na guerra, é uma questão concreta no caso ucraniano, e um assunto delicado para o Ocidente.

Mais algum?

Em 1948, uma carta foi enviada ao New York Times, escrita por alguns intelectuais judeus de alguma relevância. Tipo Albert Einstein e Hanna Arendt, os dois nomes que certamente todos os leitores conhecerão. A carta abre assim:

Among the most disturbing political phenomena of our times is the emergence in the newly created state of Israel of the “Freedom Party” (Tnuat Haherut), a political party closely akin in its organization, methods, political philosophy and social appeal to the Nazi and Fascist parties. It was formed out of the membership and following of the former Irgun Zvai Leumi, a terrorist, right-wing, chauvinist organization in Palestine.

The current visit of Menachem Begin, leader of this party, to the United States is obviously calculated to give the impression of American support for his party in the coming Israeli elections, and to cement political ties with conservative Zionist elements in the United States. Several Americans of national repute have lent their names to welcome his visit. It is inconceivable that those who oppose fascism throughout the world, if correctly informed as to Mr. Begin’s political record and perspectives, could add their names and support to the movement he represents.

Quase duas décadas depois, esse líder terrorista virou primeiro-ministro de Israel, e o Likud, a versão atual desse partido, é o partido em torno do qual a política de Israel se articula desde essa época, seja com ele no centro do governo, seja na oposição a ele. Líder terrorista? Sim, o atentado contra o Hotel Rei David em 1946 é um marco na história do terrorismo. Os ingleses não gostaram do governo de Israel ter celebrado os sessenta anos do atentado, com plaquinha e tudo.

Mas voltando a Einstein, os movimentos políticos do qual o Likud descende diretamente, os do sionismo revisionista de Jabotinsky, tem uma forte relação com o fascismo. Mas um partido fascista estar no comando de um governo torna aquele Estado necessariamente fascista? Essa é uma boa pergunta se fazer. A existência de mecanismos democráticos, de aspectos institucionais como um judiciário independente, sinaliza a meu ver que não. Por outro lado, práticas conduzidas por esse Estado, hoje e ao longo de décadas, se espelham nessa construção ideológica fascista.

E nesse sentido, quando o embaixador de um país se alinha aos cosplayers de “um cabo e um soldado” de outro país, estamos falando de um alinhamento ideológico entre esses grupos políticos, e não estritamente do país em si.

Mas atentemos a essa ironia: dois governos com elementos fascistas são hoje os beneficiários militares de um governo americano eleito, em parte, a partir de uma luta da Antifa contra o governo anterior.

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