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Nos tempos em que o Mickey ficou livre, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Aposentado do BNDES

“Ah, you’ve been with the professors and they’ve all liked your looks
With great lawyers you have discussed lepers and crooks
You’ve been through all of F. Scott Fitzgerald’s books
You’re very well-read, it’s well-known
But something is happening here and you don’t know what it is.”
(Robert Zimmerman)

VÍNCULO 1576 – Soso pede que fale sobre Milei. Afinal, mal começou já tirou a Argentina dos BRICS; já cometeu um desmascarado ato de teatralidade fake de austeridade; e nesse processo cometeu imagens que, nas palavras de Soso, são a própria definição de cringe. Eu, nos meus ainda sessenta, não vejo mais do que Itamar num carnaval, uma teatralidade de poder padrão SBT para que as massas acreditem ver um homem dotado da mesma patética mundanidade que ela. Sério, alguém ainda cai nessa?

Para mim o ano virou com outros eventos muito mais significativos acontecendo no mundo. Por onde começar? Comecemos pela expansão dos BRICS, o elemento central de reestruturação do mundo contra o qual o idealismo tão argentino deste libertário de comédia se insurge. Dobraram de tamanho na virada do ano, com dois países africanos e três países asiáticos, da OPEP. Não três países quaisquer: juntar Irã com Emirados e Arábia Saudita após todos os conflitos que eles tiveram, desde a derrubada do Xá até a guerra recente no Iêmen, é uma sinalização de que esses países produtores de petróleo sabem que não só seu futuro, como seu presente, será decidido pela China. Pela demanda chinesa, pela produção chinesa, por uma ordem comercial que não envolve práticas imperiais. Práticas imperiais e práticas imperialistas é algo da qual a China foi vítima, na mão dos mongóis, dos ingleses, dos japoneses. Como o mundo islâmico na mão de mongóis e turcos. Tudo isso é memória civilizacional, tudo isso remete a um mundo que muitos querem chamar de multipolar, mas que de multipolar não tem nada: a China tem sua gigantesca capacidade produtiva, os três novos asiáticos uma capacidade de gerar excedente financeiro com a vantagem competitiva de sua geografia e uma disposição de se desenvolver. O ponto do desenvolvimento que a China oferece é que ela não é um projeto messiânico disposto a converter/compelir o mundo à sua imagem e semelhança. O desenvolvimento que ela oferece à demais Ásia não envolve sequer uma submissão hierárquica. Como já escrevi antes, minha aposta, assim como a de Pepe Escobar, é de que mesmo o novo centro financeiro da Economia-Mundo ficará nos Emirados, um lugar bem mais cosmopolita para ser centro da bandalha financeira do que mesmo Xangai.

Mas não para por aí os BRICS. Como o Pepe semana passada reclamou, nenhum BRICS tinha entrado ainda com uma ação contra o genocídio em curso em Gaza. Tem uma semana que isso mudou: a África do Sul entrou com uma ação contra Israel na Corte Internacional de Justiça na quinta antes da virada do ano. Ser a África do Sul a autora desta ação é, do ponto de vista político, perfeito: o país do terceiro mundo que até três décadas atrás tinha um governo supremacista branco, no qual a palavra apartheid foi inventada. De todos os BRICS talvez aquele que menos possa ter problemas políticos internos com isso (da década de setenta em diante Israel tinha ótimas relações com o regime sul-africano) é a África do Sul. E dentre eles, certamente o mais difícil de ser atacado nessa decisão por um governo americano democrata é a África do Sul.

Como escreveu antes Craig Murray, um ex-diplomata britânico e um dos maiores amigos de Assange, “it is not that people are worried that a claim of genocide will not be successful at the International Court of Justice. It is that everybody is quite sure it will succeed.” A incapacidade do amorfo regime Biden de estancar atrocidades praticadas por Israel, coisa que Reagan fez, que Baker e Bush fizeram, está corroendo com o que remanesce de respeitabilidade moral americana, como a derrota nas últimas votações de cessar fogo sugere.

Mas nem só aí para o pioneirismo dos BRICS redesenhando o mapa político. A recém-BRICS Etiópia reconheceu a Somalilândia como país. Não creio que isto teria sido feito sem ser neste ano onde a Rússia assumiu a presidência dos BRICS. Assim como a expulsão definitiva da França da região abaixo do Sahel. Isso é um redesenho significativo de poder, e esse redesenho, como no caso do que virá na Ucrânia, na linha the war situation has developed not necessarily to NATO’s advantage, while the general trends of the world have all turned against her interest. Karma is a bitch…

Enquanto isso, no Império em si uma série de Karmas aparece com suas cobranças. Não vou tratar daquele que farão o maior esforço para fingir desaparecer nos próximos dias, um mega limited hangout que é a “lista” do pedófilo “suicida” Jeffrey Epstein, que contém nomes como Bill Clinton. Não vou tratar de mais um atentado sem autor, como foi a bomba que matou mais de uma centena de pessoas no Irã. Muito provavelmente é uma provocação desesperada, como provocação foi o assassinato de um líder do Hamas no Líbano. Ambas ações sem nenhum impacto militar concreto, ações que tem apenas o objetivo psicológico de provocar uma reação. Terrorismo, pura e simplesmente. O problema de quem as tomou é que quem está do outro lado não está jogando xadrez: não há obrigação de uma resposta imediata, de uma escalada.

Há sintomas de um segundo grande realinhamento em curso esta semana, um realinhamento que não deve ser desprezado, e que terá seus espelhamentos por aqui. A reitora de Harvard renunciou. Você lerá várias explicações nos próximos dias e semanas. Esta na Folha, de um colunista do NYT, pega boa parte dos milagres sem nomear os santos. Esta na Carta Capital até toca num dos santos, mas sem pegar o elemento central do milagre no meu entendimento. Hilário é ver como Robert Reich faz um esforço de culpar os bilionários preocupados com Israel, como se não fosse outra a ficha que caiu.

Pegando os dois personagens principais, a história inicia com Bill Ackman começando uma fatwa no twitter contra os grupos de estudantes pró-Hamas. A pressão de uma série de bilionários levou alguns congressistas a cobrar umas respostas dos reitores de algumas universidades. As respostas foram respostas ensaboadas de pessoas que não queriam correr o risco de abrir qualquer tipo de precedente que pudesse ser usado em outros casos. Isso não satisfez nem os deputados, nem Ackman.

Em paralelo há a cruzada de Chris Rufo contra Diversity, Equity and Inclusion (DEI). Tal como entendo, Rufo é um dos ativistas de direita mais relevantes nos EUA hoje. A reitora de Harvard era uma das encarnações desse alvo. Mas não foi por aí seu ataque a Claudine Gay: foram coisas em sua obra que configuravam plágio. Acusações que foram crescendo ao longo que se foi esmiuçando mais a obra dela.

Fosse só leniência com o antissionismo que incomoda a alguns doadores importantes, ou uma apropriação sem citação das ideias dos outros, diria que tudo ficaria dentro dos limites confortáveis do lamento do Reich. E tudo continuaria bem para os esquemas democratas como um todo.

O problema, no entanto, está num longo post do Ackman no Twitter na quarta. Recomendo que se puder, cara leitora, leia-o. O que está acontecendo ali é a ruptura da “classe” de bilionários americanos com a agenda de DEI que foi o discurso dos democratas e da esquerda desde o momento no governo Obama em que se precisou acabar com uma bem sucedida peça de anarquismo chamada Occupy Wall Street, com seu lema “we are the 99%”. Foi preciso desenvolver todo um aparato de luta por direitos de DEI, de forma que facções continuassem combatendo entre si, no tradicional estilo de democracia americana. Só que agora caiu a ficha para a classe dos bilionários de que esse discurso de DEI é anticapitalista. E se o esquema BlackRock-Vanguard, com seus tecnocratas extremamente bem remunerados em posições de comando, não vê seu poder em cheque, para os bilionários, essas persistências de um capitalismo que morre mas ainda não morreu, o buraco da DEI é mais embaixo.

Assim como a divisão entre uma base ativista MAGA cooptando crescentemente o eleitorado conservador, comprometendo as lideranças encasteladas dos republicanos, essa crise aparentemente em torno de Gaza faz com que a divisão se instaure do outro lado. Fica claro para certa base ativista dos democratas que os interesses do establishment não são os seus. E fica claro para o establishment que ele não tem controle sobre esses freaks, sobre essa militância.

24 se anuncia um ano complicadíssimo. A Hard Rain’s A‐Gonna Fall ou The Times They Are A-Changin’, o que você acha?

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