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Profana a Vaca, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES
 

“Falou dos anjos que eu conheci
No delírio da febre que ardia
Do meu pequeno corpo que sofria
Sem nada entender”

(Roberto e Erasmo)

Janeiro branco. Nos sete dias marcados entre os aniversários de duas belas, adoráveis psicólogas percorrendo seus cinquenta, entre o artigo da semana passada e este que você lê, desta semana em que fiquei mais velho, dos eventos neste tempo não tratarei. “Paulo, quem sabe te inspire para um futuro artigo”, me escreveu um grande amigo, amigo há mais de quatro décadas, amigo de quando eu sequer podia votar. Junto, um artigo sobre “Dor psíquica e assédio na Ciência e na Academia”. Lá se vão mais de sete meses, e algumas digressões meio que vão responder a esse pedido.

Há uma terceira amiga psicóloga, também bela e cinquentona (mas canceriana), que morou no ground zero da Nova Ordem Mundial. Foi lá se fez a Microsoft, a Amazon, o grunge que desbancou com os 80, onde se inventaram os protestos antiglobalização. Durante a revolução colorida de 2020 nos EUA, lá houve até uma temporary autonomous zone, a CHAZ. Essa amiga, que construiu ali praticamente duas décadas de vida, de imigrante sem nível superior até se tornar mestra em psicologia, deu um basta em meio a pandemia e picou a mula para uma área ensolarada do Texas. A ela, ao seu relato cotidiano desse mundo, dessas pessoas, eu agradeço muito das réguas com que meço os fenômenos na América.

Mas a crise de saúde mental não se resume aos EUA. Nem ao OCDEnte. A crise também está aqui, reconhecida como problema pelas pessoas. A saúde mental está dentro do ODS 3 – Saúde e Bem-estar, com uma meta específica relacionada a suicídios. É uma preocupação significativa da OMS. É uma preocupação até das pessoas de fé.

Muitas interpretações existem, mas este reles artiguinho de opinião não está aqui para listá-las e descrevê-las. Deixo isso para os profissionais de ciência e jornalistas do campo, que ganham seu dinheiro com isso. Eles têm suas apostas, seus clichês, têm suas aspirações e carreiras.

Por exemplo, algo que discuti com meu amigo sobre o artigo acima. “Isso é particularmente verdadeiro para membros de grupos sub-representados, incluindo mulheres, indivíduos não binários, pessoas não-brancas, dissidências sexuais e de gênero (LGBTQ+) e estudantes de baixa renda”, como está escrito no artigo, é um dos xiboletes de esquerda contemporânea mais comuns sobre qualquer problema. Mas quem se suicida nos EUA são homens brancos. O que quer dizer que o artigo, como em muito das discussões de origem acadêmica, se centra em dinâmicas de poder internas à “torre de marfim”, e não, de fato, ao mundo lá fora em seus cruéis detalhes.

Johan Hari tem um argumento que coisas como depressão, na escala que temos hoje, têm sua origem na solidão, na desconexão entre as pessoas. No neoliberalismo, para ser mais preciso. Há uma curiosa história que ele conta, de como uma depressão foi curada com uma vaca no Camboja. Um desdobramento, num certo sentido, foi o mesmo Hari anos depois tratar de como elementos da vida contemporânea fizeram as pessoas perderem a capacidade de concentração.

Solução? As pessoas começam a tomar anfetamina para resgatar o foco. Há uma explosão do uso de Adderall nos EUA como smart drug. Aqui, venvanse e ritalina são usados para além dos pacientes de TDAH. Nossa Anvisa tem a sabedoria de barrar esse tipo de anfetamina que a indústria farmacêutica empurrou nos EUA.

Dependência química… as mortes por desespero nos EUA, com sua forte relação com a epidemia de opioides, pode ser posta na conta da indústria farmacêutica. Uma indústria cujo negócio não deve ser entendido como curar doenças, mas como vender remédios patenteados. Pequena digressão de uma discussão anos atrás com uma das belas psicólogas aniversariantes: a carta de tarô XV, O Diabo, tem duas pessoas acorrentadas. Estar amarrado, como numa situação de dependência e/ou vício, é a chave dela. Estar amarrado, seja com dívida, seja sob as tentações que a ciência aplicada ao marketing constroem, é uma das essências desse sistema “será que ainda é capitalismo?” em que vivemos.

O que abre para a minha primeira digressão pessoal sobre os problemas de saúde mental, a contradição da culpa num mundo que celebra o indivíduo em seu lado mais narcísico. Seja a direita objetivista randiana, ou mesmo a libertária (e a AnCap linha Milei), seja a esquerda “woke”, em ambas há a ideia de que ao indivíduo está atribuído o poder de ser quem ele quiser ser pois é tudo da lei. Se antes, como escreveu Hume, “O homem, nascido numa família, é forçado a viver em sociedade, por necessidade, por inclinação natural e por hábito”; agora, essas instituições estão todas suprimidas. Você não tem um caminho de vida mais ou menos pré-determinado. Pelo menos é o que me diz o comercial de batata na TV… você lembra da letra de Satisfaction, do Rolling Stones?

Mas você não escolhe essa vida tão livremente assim. Você está exposto a todo tipo de phishing, todo tipo de tentação a querer criar vínculo. Seu desejo segue muito desse potencial ilimitado, se torna prisioneiro de uma necessidade continuada de satisfação. Mas essa satisfação não vem, você se frustra. Você não tem mais trilhos: esses passaram a ser coisas a serem removidas. No máximo, trilhas.

Uma contradição aparece quando se insere a noção de justiça nisso. Não há justiça em é tudo da lei. Justiça, como crédito, requer culpa, requer resgate de passado no futuro. E se revogo o passado, onde se constrói a justiça? E se é tudo pactuação, qual o espaço para o experimento dionisíaco? Nessa contradição, o prazer desaparece como uma maré que se recolhe, e as correntes ficam visíveis. E a ferrugem nessas algemas, a doença mental. Afinal, o trauma é um eterno presente, um passado que se repete na mente, um loop sendo executado fora do lugar devido.

Se você me permite, tenho uma segunda hipótese pessoal. O ser humano não evoluiu para a abstração. Não que o cérebro dele não consiga manejar isso aqui e acolá, ou até continuamente em casos raros. Mas ele não foi feito para isso nas condições evolucionárias dos cantos da África e Eurásia onde o tempo fabricou nossa espécie.

Isso não foi problema até o mundo moderno. No mundo moderno você tem uma quantidade enorme de pessoas usando esse órgão do corpo chamado cérebro para manejar por horas a fio processos abstratos. Não é porque temos fantasias sobre alguma fagulha divina em nossas consciências que o cérebro não seja apenas mais um órgão, com todas as limitações de seu uso em situações extremas e não planejadas que os demais órgãos de um corpo têm.

Nesse sentido, essas pressões de uma vida que exige a presença desse peculiar órgão fazem com que as diferenças em seu funcionamento se tornem cada vez mais claras. E aí temos todo espectro de neurodiversidade se desvelando, não mais como patologia propriamente, mas como problemas adaptativos. Reinterpretar essas pessoas, para depois trazê-las para o “produtivo” através da química, não é um caminho adaptativo, não é um caminho de felicidade. É um negócio para o qual existem remédios.

Nesse mês pense nas suas amigas com depressão, nas suas amigas com burnout. Pense nas pessoas esquisitas e em suas dores. Pense em você. O mundo em que vivemos não foi feito para nós – mas é feito por nós. Seja leve, se perdoe. Seja o amigo. Seja a Vaca.

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