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Ouro de tolo

Não será pela alquimia contábil, e sim pela transparência fiscal, que país poderá sair da crise

Gabriel Demetrio Domingues – Advogado do BNDES e Mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ. Este artigo é de responsabilidade exclusiva do seu autor, não refletindo, necessariamente, a visão do BNDES sobre o assunto.

Vínculo 1273 – Na idade média, “ouro de tolo” era o nome que se dava às falsas promessas dos alquimistas, sob a forma de uma receita mística que promoveria a transmutação de chumbo em ouro. A eficácia da receita nunca foi comprovada, mas pode-se dizer que no Brasil, em pleno século XXI, os experimentos continuam em curso.

No último mês, ingressou na esfera pública ampla discussão a respeito da possibilidade de o BNDES efetuar em 2018 o pagamento antecipado de R$ 130 bilhões em favor da União, relativos a contratos de empréstimo de longo prazo, muitos deles com vencimentos somente após 2050, sob o argumento de que tal receita contribuiria para o cumprimento da chamada “regra de ouro” pelo governo federal. Pois bem, seria isso verdade ou simples alquimia?

A fim de nivelar o debate, cabe inicialmente esclarecer dois pontos: (i) a “regra de ouro”, prevista no art. 167, III, da Constituição Federal, estabelece que, a cada exercício, o total de receitas de operações de crédito (endividamento contraído) não pode superar o total das despesas de capital (basicamente investimentos e constituição de patrimônio); e (ii) o objetivo desta regra é claro: garantir a sustentabilidade fiscal, de forma que o endividamento contraído em cada exercício seja efetivamente revertido não em despesas correntes (pessoal, despesas administrativas, juros da dívida pública etc.), e sim em bens duráveis e investimentos, em favor não apenas da geração presente, mas, especialmente, das futuras, as quais suportarão os encargos do endividamento, tendo em vista a solidariedade intergeracional.

No contexto da proposta de Lei Orçamentaria Anual de 2018, a União informa que sem o pagamento antecipado do BNDES a “regra de ouro” restaria descumprida, eis que o total de receitas de operações de crédito superaria o valor das suas despesas de capital. Significa dizer que a parcela excedente deste endividamento a ser contraído seria destinada ao custeio das despesas correntes da máquina pública.

Ocorre que essa explicação também embute uma confissão velada: ao propor substituir a parcela de endividamento ex-cedente pelo pagamento antecipado do BNDES, a receita desta antecipação será também, na prática, destinada ao pagamento de despesas correntes. Tanto a lógica como a aritmética tornam essa conclusão incontornável, a despeito de eventuais justificativas contábeis.

A receita do pagamento antecipado do BNDES será utilizada para liquidar, apenas formalmente, dívidas públicas antigas (registrando uma despesa de capital) e servir como margem para justificar a emissão de novos títulos (receitas de operação de crédito) para custear despesas correntes. Através deste expediente, a União supostamente cumpriria a “regra de ouro”. Mas, talvez, esta não seja a conclusão correta, se bem examinada a substância econômica da operação.

Na prática, é como se, por um fenômeno alquímico, houvesse a transmutação das fontes: excluindo-se a operação circular de liquidação de dívida pública e subsequente emissão de novos títulos públicos (verdadeira equação de soma zero), o que resta de substancial nesta operação é destinação dos recursos provenientes do pagamento antecipado do BNDES para custeio da máquina pública.

Mas há, ainda, um detalhe importante nesta complexa operação: o pagamento antecipado em questão refere-se a empréstimos concedidos pela União ao BNDES por meio da emissão de títulos públicos. Tais recursos foram transferidos no âmbito da política anticíclica iniciada em 2008, após a crise financeira mundial, em que a União emitia títulos, se endividando, e os repassava ao BNDES sob a forma de empréstimos, a fim de que o banco ofertasse recursos a custo compatível com suas linhas de crédito. Em síntese, o capital a ser retornado pelo BNDES à União é também, na sua origem, proveniente de endividamento do governo central e, em tese, não poderia ser destinado ao pagamento de despesas correntes.

Não é possível abstrair esta origem: os recursos decorrentes do pagamento antecipado não deixam de ser oriundos de endividamento público pelo simples fato de terem sido emprestados ao BNDES e posteriormente devolvidos à União. O pagamento antecipado não modifica essa origem e, por consequência, não tem o efeito de afastar a “regra de ouro”, sob pena de se abrir à União um “cheque especial” sem limites, que a permitiria contornar um dispositivo constitucional de fundamental importância para o controle das contas públicas.

Não por outra razão, o Tribunal de Contas de União no Acórdão nº 2.975/2016, ao admitir excepcionalmente a possibilidade do pagamento antecipado de empréstimos pelo BNDES à União, condicionou a realização de tal antecipação ao efetivo abatimento da dívida pública. O que se vê, no entanto, é que a proposta orçamentária elaborada pela União para 2018, além de desatender o requisito de redução da dívida pública imposto pelo TCU, acaba por contornar por via oblíqua a “regra de ouro”.

Abstrair a origem dos recursos (dívida pública), aparentemente, também não resolve o problema. Ao considerá-los, de outra forma, como liquidação de um investimento, depara-se com outra proibição da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) no art. 44, da seção que trata da Preservação do Patrimônio Público, que veda a aplicação da receita de capital derivada da alienação de bens e direitos que integram o patrimônio público para o financiamento de despesas correntes. Essa regra, cujo objetivo, na sua essência, é o mesmo da “regra de ouro”, visa impedir a dilapidação do patrimônio público para custeio de despesas correntes, ou, em linguagem bem mais simples, a venda da casa própria para pagar a conta de luz.

Mas, então, o que se deve fazer? Há alternativas lícitas para a União cumprir a “regra de ouro”. Reduzir despesas correntes pode ser parte da solução, mesmo reconhecendo-se que, atualmente, há pouca margem para isso no âmbito das chamadas despesas discricionárias (não obrigatórias). Instituir ou majorar tributos é outra possibilidade, mas apresenta um alto custo político. Restaria, assim, a solução prevista na parte final do art. 167, inciso III, da Constituição Federal, ou seja, solicitar ao Parlamento que, por maioria absoluta, autorize, excepcionalmente, a utilização de receitas de operação de crédito para o atendimento de despesas correntes.

Não há dúvidas de que esta última decisão também envolve custos políticos, mas, dos males o menor: não será através de alquimia contábil, e sim de transparência fiscal, que o país poderá sair da crise em que se colocou. Operações complexas e de contabilidade exótica, além de pouco transparentes e juridicamente questionáveis, poderão por em risco não só a credibilidade do governo e a accountability dos seus agentes, mas, principalmente, a própria retomada da economia.

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