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NEGACIONISMO

O que as frases abaixo têm em comum?

Celso Evaristo SilvaEmpregado do BNDES e 2° vice-presidente da AFBNDES

Vínculo 1392 – “Não há evidência de um extermínio organizado em massa… Se tivesse existido um programa, 200.000 judeus não poderiam ter emigrado entre 1933 e 1939” – David Irving, historiador autodidata inglês, referindo-se ao holocausto.

“Aquecimento global é farsa para mascarar interesses geopolíticos” – Ricardo Felício, meteorologista paulista.

“Não estudei o assunto da Terra plana. Só assisti a uns vídeos de experimentos que mostram a planicidade das superfícies aquáticas, e não consegui encontrar, até agora, nada que os refute” – Olavo de Carvalho, astrólogo, jornalista e autodidata.

“A teoria da Evolução faliu, pois não conseguiu explicar a complexidade irredutível, a informação arbitrária e a antevidência vistas na vida” – Dr. Marcos Eberlin, defensor do Design Inteligente.

 “O que ocorreu em 1964 não foi um golpe, e sim uma ‘mudança de tipo institucional’” – Ricardo Vélez Rodriguez, ex-ministro da Educação.

 “Se você for ver a história realmente, o português não pisava na África, era [sic] os próprios negros que entregavam os escravos” – Jair Bolsonaro, numa entrevista à TV Cultura.

Bem, essas e outras tantas frases, artigos e livros representam a tentativa político-ideológica de negar a realidade como forma de escapar de uma verdade desconfortável; de forma a tornar possível a validação de teses e pautas ultraconservadoras.  Sua origem está na Europa Ocidental e nos EUA. 

Essa tendência não é tão nova assim. Alguns anos após a 2ª Guerra Mundial, ativistas do ultraconservadorismo mundial iniciaram – de forma tímida, no início – a desenvolver retórica revisionista sobre a ocorrência ou não do holocausto – extermínio sistemático de judeus, soviéticos, ciganos, testemunhas de Jeovah, presos políticos, homossexuais, deficientes físicos e mentais etc., mortos pelos nazistas e seus aliados, antes e durante o conflito. As conclusões a que chegavam os negacionistas eram variadas: ‘ele nunca existiu’; ‘o número de mortos é bem menor do que se diz’; ‘os campos de concentração não eram campos de extermínio, mas de trabalho’… e por aí vai.

Enquanto esse movimento crescia pontual e lentamente no interior de grupos políticos da extrema-direita mundial, outra corrente negacionista proveniente do campo religioso, chamada criacionismo, atacava as bases do evolucionismo biológico de Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Wallace (1823-1913), acusando-o de falta de embasamento empírico, portanto, de ser pseudocientífico. Tempos depois, essa linha criacionista se dividirá em várias tendências, das quais as mais importantes são duas: a defensora dos ensinamentos bíblicos como fonte explicativa para a existência de todos os seres vivos e a dos defensores do design inteligente, que tentam justificar a criação da vida pela divindade, por meio de evidências empíricas como as encontradas, segundo essa corrente, no mapa genético dos seres vivos.

Outras expressões do negacionismo ganharam força fora e dentro do Brasil. Uma das mais recentes é a dos contestadores da esfericidade da Terra e do heliocentrismo. Os terraplanistas – como ficaram conhecidos – procuram apresentar evidências empíricas de suas premissas, defendendo-as tenazmente, mesmo quando contraditadas por argumentos calcados em estudos da ciência moderna.

Todavia, é no âmbito da interpretação dos acontecimentos históricos que a tendência negacionista tem apontado seu arsenal mais forte de combate ideológico. Além do já citado revisionismo acerca do holocausto, há, no caso brasileiro, contumaz contestação dos resultados de estudos sobre a escravidão negra e o Golpe civil militar de 1964, considerado por esses grupos uma contrarrevolução anticomunista – só para ilustrar dois casos emblemáticos desse ‘ataque’ negacionista.

Mesmo quando certos autores de livros sobre a escravidão negra no Brasil não chegam a adotar uma postura claramente de negação do fenômeno, é possível perceber elementos argumentativos atenuantes do sistema escravista, tais como: “a escravidão era parte da cultura africana”; “havia, no Brasil, ex-escravos possuidores de escravos”; “o racismo no Brasil foi diluído pela miscigenação racial decorrente da interação sensual entre a casa-grande e a senzala”.   

Tais argumentos, respaldados por alguma comprovação factual, tomados por si sós, desconectados da dinâmica do sistema escravista, podem ter algum teor de verdade, o que não desmonta, de forma nenhuma, as conclusões de inumeráveis e importantes estudos históricos sobre deformações éticas, políticas, econômicas e sociais herdadas pela sociedade brasileira, decorrentes do passado escravocrata do país. Ou seja, o negacionismo do que foi a escravidão, de sua natureza perversa, é, muitas vezes, sutilmente disfarçado pela constatação empírica de determinados aspectos tomados fora do contexto maior de sua dinâmica e pelo peso dado à micro influência de sua ocorrência. O número de ex-escravos com alguma mobilidade social ascendente é a exceção que só vem a confirmar a regra do apartheid social provocado pelo sistema escravista.

A mais recente realidade negada foi a pandemia provocada pelo novo coronavírus – a Covid-19.  Aqui, no Brasil, e alhures, vários grupos negacionistas afirmavam taxativamente tratar-se de uma histeria coletiva, de uma simples gripe, ou ainda, que a China se beneficiaria economicamente com a crise, principalmente por causa da queda do preço do petróleo e das ações de grandes empresas no mundo, além da valorização do dólar, aumentando o lucro dos chineses com a venda de títulos públicos americanos. Essa atitude desvairada de negar a gravidade da situação causou perda de tempo precioso no combate inicial à doença em alguns países ocidentais, como a Itália, onde se criou até uma campanha contra o isolamento social na Lombardia, cujo bordão era: “Milão não para!”. Cedo, essa negação da realidade custaria caro aos habitantes locais e de todo o país.

Bem, mas o que leva muitas pessoas a negar fatos históricos, experimentos e teorias científicas amplamente comprovados sem ter elementos de contraprova de peso? Por que teorias conspiratórias ganham tamanha força de verdade sem nenhuma ou com pouquíssima conexão com a realidade dos fatos e evidências? Onde os negacionistas pretendem chegar com essa atitude de afastamento quase patológico da realidade? Qual a gênese do negacionismo?

Poderíamos especular sobre as perguntas acima dando como repostas a crise de mudança de milênio, o fim de uma era e o parto de outra; talvez o desdobramento normal das contradições da sociedade massificada, na qual pensamentos estereotipados, ideias de fácil assimilação e o fast food cultural substituam – por serem de rápida e fácil assimilação – o trabalho meticuloso e demorado do conhecimento científico. Aquilo descrito pelo intelectual conservador Ortega y Gasset (1883-1955) no seu livro “A Rebelião das Massas”:

“Observai os que vos rodeiam e vereis como avançam perdidos na vida; vão como sonâmbulos, em sua boa ou má sorte, sem ter a mais leve suspeita daquilo que lhes acontece. Ouvireis como falam em fórmulas taxativas sobre si mesmos e sobre o seu entorno, o que indicaria que possuem idéias sobre tudo isso. Porém, si analisásseis sumariamente essas idéias, notaríeis que não refletem muito nem pouco a realidade a que parecem referir-se, e se aprofundásseis mais na análise acharíeis que nem sequer pretendem ajustar-se a tal realidade. Antes o contrário: o indivíduo trata com elas de interceptar a sua própria visão do real, de sua vida mesma. Porque a vida é o caos no qual se está perdido. O homem o suspeita: porém o assusta encontrar-se cara a cara com essa terrível realidade, e procura ocultá-la com uma cortina fantasmagórica onde tudo está muito claro. Não lhe importa que suas ‘idéias’ não sejam verdadeiras; emprega-as como trincheiras para defender-se de sua vida, como instrumentos para afugentar a realidade”.

Pois bem, o movimento negacionista composto por diversas correntes vem crescendo enquanto força política conservadora. Seu combate ao tripé da herança iluminista é nítido: a racionalidade, o humanismo e a laicidade do Estado. Serve de base à tentativa de ressurgência da religiosidade medieval marcada pela submissão absoluta do homem ao poder divino e da Terra como local da sua manifestação no universo (geocentrismo); o criacionismo bíblico passa a ser um dogma, daí sua difícil convivência com os princípios e explicações científicas da biologia. No plano político o objetivo parece ser o restabelecimento do regime teocrático. O tipo de Estado ideal seria aquele caracterizado pela sinergia entre a técnica profana e os valores do cristianismo. Outro elemento importante no ideário negacionista é o alinhamento com os princípios do liberalismo econômico. Estaria assim forjada a base ideológica para a restauração da chamada civilização ocidental judaico cristã.

Tudo leva a crer ser este o percurso desse estranho movimento de reação à modernidade. Sua presença é tão avassaladora quanto intrigante; tão banal quanto oculta nas suas reais intenções. Políticos, empresários, intelectuais, tecnocratas ao adotarem atitudes negacionistas são capazes de afirmar algo categoricamente pela manhã, desmentir o dito à tarde e modificar tudo à noite… e o pior: sem causarem grandes consternações na cabeça de seus ouvintes. É quando o negacionismo enquanto estratégia política passa a incorporar também o cinismo ético como paradigma existencial.

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