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Reforma Tributária: Começou ou não?

Paulo Henrique Pêgas – Contador do BNDES

Vínculo 1402 – Para justificar a relevância do tema e a extensão do artigo, gostaria de iniciar nossa conversa reproduzindo um texto publicado na mídia: “Estamos vivendo um momento especial. Depois de longos anos de luta do setor produtivo, parece que não só a sociedade brasileira e o empresariado, mas também os nossos políticos e até mesmo o governo federal, finalmente se convenceram de que a economia do país não conseguirá mais evoluir sem a adoção imediata de um novo modelo tributário. Ninguém mais tem dúvida de que o Brasil precisa acabar com a atual colcha de retalhos que é a nossa legislação tributária, implantando em seu lugar um sistema simples, eficiente e, sobretudo, justo. Um sistema no qual a produção não seja tão sobrecarregada de múltiplos impostos e nem os brasileiros de menor poder aquisitivo sejam, apesar disso, obrigados a pagar caro para se alimentar. Acenos importantes têm sido feitos pelo próprio governo”.  

Calma, esse texto não é atual, não foi escrito no meio da pandemia da Covid-19. Foi extraído do site https://monitormercantil.com.br/a-hora-da-reforma-tributuria do dia 23/set/1999, tem mais de 20 anos, mas poderia perfeitamente se encaixar nesse último decêndio de julho de 2020, quando finalmente o Ministério da Economia apresentou para a sociedade a primeira parte do projeto de reforma tributária. A lamentar apenas a percepção, pela leitura da matéria do Monitor Mercantil, que a reforma tributária, já em 1999, era ansiosamente aguardada pela sociedade depois de longos anos de luta do setor produtivo. E o que o Brasil foi capaz de fazer durante essas duas longas décadas? Conseguimos piorar ainda mais o nosso manicômio tributário. Antes de comentar o Projeto de Lei nº 3.887/2020, importante fazer um diagnóstico do modelo tributário atual, trazendo números importantes para reflexão da necessidade urgente de começar o ano de 2021 com algumas mudanças no sistema tributário, mesmo que a reforma completa demore um pouco mais para ser concluída. Listei quatro problemas para você entender o quão difícil, porém necessário, será realizar uma reforma tributária no Brasil. 

PROBLEMA nº 1: MUITAS CONTRIBUIÇÕES QUE, NA PRÁTICA, SÃO IMPOSTOS DISFARÇADOS, COM OUTRA EMBALAGEM 

Quando foi promulgada nossa carta magna de 1988, a carga tributária estava em torno de 24% do Produto Interno Bruto. E os impostos, principal tributo cobrado aqui e em todo lugar do mundo, respondiam por aproximadamente 70% da nossa carga de tributos, ou o equivalente a 17% do PIB. Decorridos 30 anos, a Receita Federal do Brasil – RFB nos informa que a carga tributária de 2018 (último dado disponível) atingiu pouco mais de 33% do PIB, com os impostos respondendo pelos mesmos 17% de 1988, ou seja, os impostos representam atualmente pouco mais da metade do que arrecadamos. Ora, mas a carga aumentou substancialmente, de 24% para 33%. Onde está esse aumento de nove pontos percentuais na arrecadação, um salto de 37,5%? Aí é que reside o problema, pois o aumento foi concentrado nas contribuições, espécie de “imposto disfarçado, com outra embalagem”, que desde os anos 1990 entrou com tudo na nossa economia e esculhambou de vez nosso já combalido sistema tributário. As contribuições têm recursos direcionados, seja para a seguridade social (saúde, previdência e assistência social), Ministério (hoje secretaria) do Trabalho (programas diversos de incentivo ao emprego) ou para programas ambientais e gastos com infraestrutura no setor de transportes, como a CIDE-Combustíveis. Mas, na verdade, o que representa a dupla PIS+COFINS se não o ICMS ou o ISS com outra embalagem?  

Uma empresa comercial não pode pagar só o ICMS com alíquota maior, em vez de pagar três tributos diferentes? Um hotel não poderia pagar apenas o ISS somando as três alíquotas em vez de ser submetido ao controle das contribuições sociais, além do imposto municipal sobre serviços – ISS? O cliente (no caso, o hotel) nada tem a ver com a disputa entre os entes estatais. Ele deveria pagar um imposto só e depois os governos distribuiriam o dinheiro. Inadmissível isso não acontecer em 2020, com todo avanço tecnológico que temos. E a CSLL, qual razão da sua existência se já temos o imposto de renda que é cobrado sobre base idêntica, o lucro das empresas? Ninguém conseguirá justificar sua criação e manutenção, exceto por uma tentativa de a União arrecadar recursos não passíveis de distribuição a estados e municípios. Já deveria ter sido incorporada ao IR há muitos anos. 

PROBLEMA nº 2: EXCESSIVA E COMPLEXA TRIBUTAÇÃO SOBRE A PRODUÇÃO E O CONSUMO DE BENS E SERVIÇOS 

Uma das propostas em análise no Congresso Nacional, a PEC nº 110/2019, pretende substituir diversos tributos por um novo imposto, denominado Imposto sobre Bens e Serviços – IBS, em modelo similar à contribuição apresentada no PL nº 3.887/2020. Para você entender, como será difícil tal substituição, veja os tributos substituídos e seus detalhes, incluindo arrecadação em 2018 (R$ bilhões, ao lado dos impostos):

– ICMS (479), estadual, cobrado no comércio, indústria e alguns serviços. Tem 25% dos seus recursos repassados aos municípios. 

– COFINS (244), federal, cobrado sobre as receitas das empresas. Seus recursos são destinados à seguridade social (saúde, previdência e assistência social). 

– PIS/PASEP (67), federal, cobrado sobre as receitas das empresas. Seus recursos são destinados à programas de incentivo ao emprego. 

– ISS (62), municipal, cobrado sobre as receitas dos prestadores de serviços. 

– IPI (54), federal, cobrado na importação e nas vendas de produtos industrializados. Tem 56% da sua arrecadação repassada para estados e municípios + 3% destinados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento – FND[1]

– IOF (37), federal, cobrado sobre crédito, câmbio, seguro e TVM.  

– Outros (39), representado por Salário Educação, CIDE e outras contribuições. 

Além de ter quantidade desnecessária de tributos, a arrecadação total preocupa, beirando R$ 1 trilhão (R$ 982 bi). Naturalmente, tais impostos e contribuições são repassados ao consumidor final, onerando de forma intensa todo o mercado consumidor, mas sendo cruel com as pessoas de menor renda, que consomem maior percentual do que ganham e são severamente punidas em cada compra de mercadoria ou serviço. Uma lata de achocolatado, que custa em torno de R$ 6 no supermercado, tem simplesmente R$ 2 dos tributos listados no seu preço. Se analisar por dentro, temos alíquota de 33%. Se sua análise for por outro lado, verá que o produto custou R$ 4 e acrescentamos R$ 2 de impostos, chegando aos R$ 6. Assim, a alíquota ficou em 50%. Assustador, mas é real. 

A sopa de letrinhas faz a festa da turma da área contábil-tributária que atua no contencioso tributário, que, conforme estudos, representa mais de 2/3 do PIB. Um caso ilustra essa confusão: a discussão para a retirada do ICMS das bases de PIS e COFINS, que se arrastou por quase vinte anos, foi vencida pelos contribuintes em março de 2017 em polêmica decisão do STF (6 a 4). O resultado será a transferência de mais de R$ 200 bilhões[2] da sociedade brasileira às empresas, principalmente as de grande porte e aos profissionais do direito tributário, que, importante registrar, estão apenas exercendo seu ofício. 

A alíquota de 12% da Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS do PL nº 3.887/2020 causou frisson e repúdio, principalmente nos prestadores de serviços. Agora, se a CBS pretende substituir apenas PIS e COFINS e já causou toda essa confusão com sua alíquota de 12% (por fora), imagine quando for definida a alíquota do IBS, que substituiria também ICMS e ISS. Por isso que entendo ser necessário mexer no mix consumo/renda, se o que se pretende fazer aqui for realmente uma REFORMA TRIBUTÁRIA.

PROBLEMA nº 3: DISTRIBUIÇÃO DOS RECURSOS (ORÇAMENTO ENGESSADO)

Análise simples nos números da carga tributária mostra o seguinte: a União arrecadou R$ 1.547 bilhões em 2018, mas transfere, obrigatoriamente, cerca de R$ 237 bi para estados e municípios, via Fundo de Participação dos Estados e dos Municípios (FPE e FPM). De R$ 1.310 bi que sobra, quase R$ 1 trilhão (R$ 993 bi) vai para trabalho e seguridade social e outros R$ 168 bi estão vinculados a contribuições parafiscais, como FGTS e aquelas destinadas ao Sistema S. Fazendo conta simples (1.310 – 993 – 168), sobrou em torno de R$ 150 bilhões para pagamento das despesas de funcionamento dos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e de todos os demais gastos da União. A conta não fecha. Melhor nem falar das contas dos estados e municípios, pois sabemos que estão em situação tão complicada quanto o governo central sob o ponto de vista econômico, financeiro e orçamentário. 

PROBLEMA nº 4: REGRESSIVIDADE NO IRPF + ALÍQUOTA EFETIVA DE 21% NOS GRANDES GRUPOS = CONCENTRAÇÃO DE RENDA + DESIGUALDADE SOCIAL 

Analisando o extrato do IRPF divulgado pela RFB[3],é possível observar que o Brasil possuía 11 milhões de declarantes em 1998, que informavam receber 69% de rendimentos tributáveis e 22% de valores isentos de IR, com 9% de rendimentos com tributação definitiva (exclusiva na fonte). Passados 20 anos, observando os números de 2018, verifica-se que foram 29 milhões de contribuintes, que informaram 59% de rendimentos tributáveis e 31% isentos, com 10% de tributação definitiva. Como os dividendos representam rendimentos isentos no Brasil desde 1995, houve forte migração ao longo dos anos de rendimentos tributáveis para isentos, principalmente nas faixas mais elevadas de renda[4]. Em 2007, pouco mais de um dos vinte e cinco milhões de contribuintes (4,3% do total) que entregaram suas declarações informavam ter recebido dividendos/distribuição de lucros com isenção de IR. Em 2018, 11 anos depois, o número saltou para 3,2 milhões (11% do total). A tabela a seguir, embora tenha muitas linhas e colunas, é esclarecedora. Pela sua relevância, serão apresentados comentários em tópicos para facilitar o entendimento, após sua transcrição.  

– Na primeira coluna (2018), o rendimento é mensal e com base aproximada no salário mínimo de 2019 (R$ 998). 

– A comparação com 2007 é mais fechada por falta de abertura detalhada dos dados naquele ano.

– Perceba que a alíquota média dos + de 30 milhões de declarantes foi 6,5%. Porém, comparando com 2007, houve aumento de alíquota de 4,4%.

– 676 mil brasileiros que declararam renda mensal (tributável + isenta) acima de R$ 40 mil tiveram expressiva redução na sua alíquota de IRPF durante esses 11 anos (2007 para 2018).

– Já a faixa de renda entre R$ 20 e R$ 40 mil/mês não apresentou aumento ou redução na média dos 1.563 mil contribuintes.

– O grupo de 3,7 milhões de pessoas com renda média mensal entre R$ 10 e 20 mil experimentou aumento na alíquota de 46%. E os 7,7 milhões com renda mensal entre R$ 5 e R$ 10 mil assumiram aumento de alíquota de IRPF em 134%.

– A falta de correção na tabela desde 2015 foi o principal fator para o brutal aumento percentual na tributação da turma (8,3 milhões) na faixa mensal entre R$ 3 e R$ 5 mil. E essa falta de correção é mais um fator que explica o aumento das alíquotas nas faixas entre R$ 5 e R$ 20 mil.

– Observe que a alíquota efetiva vai subindo até a faixa de R$ 20 a R$ 30 mil, sendo que a partir da faixa de R$ 40 mil ela passa a diminuir. Tal fato se justifica na leitura das três colunas finais, pois quanto maior o rendimento, maior o percentual de rendimentos isentos e exclusivos na fonte tem o contribuinte. 

O modelo brasileiro de cobrança do IRPF é ou não regressivo? Por isso, conforme dados da ONU, somos o 7º país mais desigual do mundo e o 2º com maior concentração de renda, atrás apenas do Catar. 

Mas, o argumento original para a concessão e manutenção da isenção no pagamento de dividendos nas pessoas físicas com maior rendimento se justifica pela elevada alíquota cobrada nas empresas brasileiras. Será? Pesquisa realizada em 100 dos maiores grupos brasileiros nos últimos dez anos (2010 a 2019) revela que a alíquota média praticada no Brasil de IR+CSLL sobre o lucro ficou em 21%, conforme tabela a seguir: 

Diversos motivos explicam essa redução de alíquota, sendo os três principais:

1. Pagamento de Juros sobre capital próprio;

2. Uso de incentivos fiscais de redução, como o lucro da exploração; e

3. Uso do lucro presumido em empresas controladas e consolidadas nas DFs.  

Portanto, é preciso calma na hora de afirmar que as pessoas jurídicas pagam muito imposto sobre lucro no Brasil. São apenas 100 grandes grupos nacionais, mas que representam praticamente todos os setores importantes da atividade econômica e considerando alíquota média de dez anos, para não causar distorção. 

A PROPOSTA DE REFORMA TRIBUTÁRIA COMPLETA E O PRIMEIRO PROJETO APRESENTADO PELO MINISTÉRIO DA ECONOMIA 

Analisando a reação ao recebimento do PL nº 3.887/2020, percebe-se o quanto será complicado fazer uma reforma tributária no Brasil. Ainda que o documento tenha demorado demais a ser apresentado e esteja longe da completa simplificação, ele traz importantes avanços, mas que foram rechaçados de imediato pela cultura individualista e imediatista que cerca a sociedade brasileira, mesmo aquela com (teoricamente) melhor nível intelectual. A primeira análise que se faz, em um caso desses, é olhar para dentro de si e fazer a seguinte pergunta: eu pagarei mais do que pago hoje? Só isso. Não se pergunta: o que eu pago hoje é a parcela justa em relação a minha renda e capacidade contributiva? Ou, será que eu poderia pagar um pouco mais do que pago hoje? Irei explicar a seguir o que seria o novo tributo, a Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS, e você poderá observar que, ainda que longe do ideal, ele traz avanços importantes e é muito melhor do que temos hoje na insana legislação que rege a cobrança das contribuições para PIS/PASEP e COFINS. 

O governo demorou demais para começar a apresentar seu projeto de reforma tributária. Isso é fato. Porém, parece correta a lógica da proposta completa, distribuída em quatro etapas importantes, a saber: 

1. Integração de PIS e COFINS em contribuição única sobre bens e serviços – CBS, num modelo similar aos utilizados em nações desenvolvidas; 

2. Transformação do IPI em um imposto realmente seletivo, cobrado apenas sobre poucos itens, de forma simplificada e cumulativa; 

3. Redução da alíquota de IRPJ, com tributação da distribuição de lucros e dividendos, seguindo o lema: mais impostos para pessoas físicas e menos impostos para pessoas jurídicas; e 

4. Redução dos encargos sociais, com substituição para um imposto sobre transações financeiras. 

Por enquanto só o primeiro item foi apresentado, por meio do PL nº 3.887/2020, criando a CBS, integrando as legislações vigentes de PIS/PASEP e COFINS. E sobre ele serão feitos alguns comentários. Os outros três itens precisam ser integrados ao primeiro para construir um processo completo de reforma na essência do sistema tributário nacional. 

Inicialmente, é importante registrar o primor técnico do texto apresentado, sem dúvida construído com qualificada base científica e jurídica, inspirado no modelo do IVA canadense. Teoricamente, a cobrança da CBS ficou bem mais simples do que o modelo atual, porém naturalmente traz aumento de carga tributária para alguns, neutralidade para a maioria e redução em outros casos. Não há como fazer reforma 100% neutra, a não ser que deixe o sistema exatamente do jeito que está. Para facilitar o entendimento, serão apresentados os principais pontos do texto, seguidos de alguns comentários, quando pertinentes. 

– A BASE DE CÁLCULO foi definida como o valor adicionado pela empresa. Então, a empresa separa, num primeiro momento, a CBS a pagar sobre todas as suas vendas, com a receita bruta apurada conforme previsto na legislação tributária, alcançando apenas a receita da atividade principal prevista no contrato social/estatuto. O ICMS e ISS, que continuam sendo cobrados por dentro, reduzem a base da CBS. Já as demais receitas ficam de fora da base, exceto juros e multas acrescidos à receita da atividade fim. Então, por exemplo, se você tem uma venda a prazo de R$ 500, com ICMS de 20% (R$ 100) incluído no preço e o cliente paga com atraso, sendo cobrados multa + juros de R$ 25, terá CBS a pagar de R$ 51 (425 x 12%).  

Por outro lado (quase[5]) tudo que a empresa tiver de gastos com cobrança de CBS poderá ser deduzido da CBS a pagar. A título exemplificativo, supondo empresa comercial, ela teria crédito sobre o estoque adquirido, sobre as despesas de água, energia, aluguel (se pago a pessoa jurídica), internet, embalagens, compra de móveis, equipamentos e veículos, material de escritório, limpeza, treinamento e outros itens. Tudo que adquirir com cobrança de CBS (que será destacado no documento fiscal) poderá ser deduzido dos R$ 51 apurados na sua venda. É realmente um tributo sobre valor agregado com o chamado crédito financeiro. Sem dúvida, um enorme avanço. 

– COMPRAS DE EMPRESAS NO SIMPLES continuarão gerando crédito, porém pela parcela da CBS que foi cobrada destas empresas. Este processo foi importante, pois de cada dez empresas brasileiras, sete são tributadas pelo SIMPLES. Supondo compra de empresa comercial, tributada pelo SIMPLES, com receita mensal de R$ 75 mil, há o pagamento de uma guia única, incluindo IR+CSLL, Contribuição Previdenciária Patronal, ICMS e o CBS (que substituirá PIS e COFINS), no total de 8,2%. A parcela da CBS representa 1,27% e este será o montante que produzirá o crédito para a empresa compradora. Se esta compra foi de material de escritório/limpeza de R$ 1.000, o crédito será de R$ 12,70[6], ficando a despesa reconhecida em R$ 987,30. Parece complicado, mas se o valor da CBS for destacado no documento que ampara a venda, não haverá problema.  

– ISENÇÕES DIVERSAS foram incluídas no texto, com a cesta básica totalmente desonerada, por exemplo. Importante deixar claro que como não haverá cobrança de CBS na venda, o comprador não terá direito a crédito. Em alguns casos, há o chamado “crédito presumido”, quando mesmo com o vendedor não tendo que pagar a CBS há permissão para o comprador se creditar de um percentual. Por exemplo, na venda de frutas in natura não há cobrança de CBS. Suponha um hotel, que compre frutas por R$ 500 para utilizar no café da manhã ou para fazer sucos para seus hóspedes. No caso, poderá utilizar um “crédito presumido” de 1,8% (15% de 12%), no montante de R$ 9. 

– QUEM VENDER PRODUTOS TRIBUTADOS E ISENTOS simultaneamente deverá ter atenção especial para o uso de créditos. Vamos a um exemplo. Um supermercado tem receita bruta de R$ 20 mil, sendo 70% de produtos tributáveis (14.000) e 30% de produtos com isenção (6.000). Sobre a venda de R$ 14 mil, o supermercado acrescentará R$ 1.680 (12%) de CBS, cobrando do seu cliente R$ 15.680 (14.000 + 1.680). A venda de 6.000 sairá sem a contribuição. Admita que a conta de energia elétrica do supermercado seja R$ 2 mil (Despesa) + R$ 240 (12%) de CBS, totalizando R$ 2.240. Neste caso, o desconto no pagamento será de apenas R$ 168 (70% de 240), com o supermercado assumindo o valor da CBS pago na compra de R$ 72 (30% de 340). Resta a seguinte dúvida: a despesa de energia elétrica será de R$ 2.072, incluindo a CBS não aproveitada? Entendo que sim. Lembrando sempre que, para fins de simplificação, desconsideramos o ICMS aqui. 

ENTENDENDO A CBS POR MEIO DE EXEMPLO NUMÉRICO 

Importante explicar a aplicação da CBS por meio de exemplo numérico em uma pequena cadeia produtiva. 

Suponha que a Cia. Alfa produza X, que será vendido diretamente a Cia Beta, varejista, que revenderá o produto ao consumidor final. Colocarei alguns prestadores de serviço no caminho, para tornar o exemplo o mais real possível. Para fins de simplificação, deixarei o ICMS de fora do processo, pois as bases de cálculo da CBS deveriam sempre retirar o imposto estadual. 

Cia. ALFA, PRODUZ X

. Gastou R$ 1.000 na compra de insumos agrícolas, pagando R$ 1.120 pela inclusão da CBS de R$ 120 (12% de 1 mil). 

. Comprou frutas in natura, que representam matéria prima na produção de X por R$ 500, sem a cobrança da CBS, pois a venda de frutas é isenta. Porém, a Cia. Alfa terá direito a um crédito presumido de CBS de 1,8% (15% de 12%), montando R$ 9. 

. Pagou R$ 200 a seus empregados da produção. Para fins de simplificação, apenas os três gastos listados (insumos + frutas + mão de obra) integrarão o custo de produção. 

. Pagou R$ 200 de contas de energia, água e telecomunicações, acrescido da CBS de R$ 24 (12%), totalizando R$ 224. 

. Gastou R$ 50 em treinamento, acrescido de R$ 6 (12%) da CBS, pagando R$ 56. 

. Como faz sua contabilidade, RH e parte jurídica fora, pagou por esses serviços R$ 150, acrescido de R$ 18 da CBS, pagando R$ 168. 

. Produziu 20 unidades de X e vendeu tudo por R$ 125 cada + CBS de R$ 15 (12%), sendo R$ 140 por unidade. No total, deu R$ 2.500 + 300 (12%) = R$ 2.800, foi o valor cobrado do comércio varejista. 

APURAÇÃO DA CBS DA CIA. ALFA (INDÚSTRIA):
+ CBS a Pagar de R$ 300 (2.500 x 12%).
– CBS a Recuperar de R$ 177 (120 + 24 + 6 + 18 + 9)
= CBS Líquido a Desembolsar de R$ 123.
. Não gerou crédito de CBS o gasto de mão de obra.
. A Cia. Alfa teve receita bruta de R$ 2.500 + R$ 9 ref. Crédito presumido de CBS.
. Como vendeu tudo, seu custo das vendas foi R$ 1.700 (1.000 + 500 + 200).
. Demais despesas de R$ 400 (200 + 50 + 150).
. Assim, o lucro da Cia. Alfa montou R$ 409 (2.509 – 1.700 – 400).
. Perceba que a CBS não representa despesa nem receita do distribuidor. Este apenas pagou a contribuição nas suas compras e cobrou do cliente a CBS na venda. Apenas o valor do crédito presumido obtido na compra da fruta foi registrado em receita.

CIA. BETA, COMÉRCIO VAREJISTA
. Comprou 20 unidades de X pagando R$ 2.500 + 300 (12%) de CBS, totalizando R$ 2.800.
. Tem despesas com aluguel, energia elétrica, telecomunicações e serviços de terceiros, pagando R$ 100 + R$ 12 de CBS (12%), totalizando R$ 112.
. Contratou frete para entregar seus produtos, pagando a empresa de transportes (tributada pelo SIMPLES) o total de R$ 100, sendo que a CBS montou R$ 2,65[7] e virá destacada na nota. Neste caso, a despesa de frete do distribuidor montará R$ 97,35 (100,00 – 2,65 da CBS). 
. Pagou tarifas bancárias ao Banco da Praça de R$ 25. Neste caso, embora o banco pague sua CBS (5,8% = R$ 1,45), este valor não produz direito a crédito. 
. Comprou material de limpeza/escritório por R$ 36,25 + 4,35 (12%) de CBS, pagando R$ 40,60.
. Gastou R$ 41,40 com mão de obra.
. Revendeu todo o estoque de X por R$ 3.000 + CBS de R$ 360 (12%), cobrando do cliente R$ 3.360 (150 a unidade + 18 de CBS = R$ 168).

APURAÇÃO DA CBS DA CIA. BETA (DISTRIBUIDOR):
+ CBS a Pagar de R$ 360 (3.000 x 12%).
– CBS a Recuperar de R$ 319 (300 + 12 + 2,65 + 4,35)
= CBS Líquido a Desembolsar de R$ 41.
. Não gerou crédito de CBS o gasto de mão de obra.
. A empresa teve receitas de R$ 3.000 e despesas de R$ 2.800 (2.500 + 100 +
 97,35 + 25 + 36,25 + 41,40), com lucro de R$ 200.
. Perceba que a CBS não representa despesa nem receita do distribuidor. Este apenas pagou a contribuição nas suas compras e cobrou do cliente a CBS na venda.

Trata-se de profunda e relevante mudança cultural no processo, pois a CBS será cobrada por fora, acrescida ao preço, de forma transparente. Vamos analisar as duas empresas do exemplo didático e observar quanto elas pagaram da contribuição, lembrando que ela não faz parte do resultado, conforme já comentado. 

DRECIA. ALFACIA. BETA
RECEITA BRUTA2.5003.000
(-) CUSTO DAS VENDAS1.7002.500
LUCRO BRUTO   800  500
(-) DESPESAS ADMINISTRATIVAS   400 300
(+) RECEITA DE SUBVENÇÃO[8]      9
LUCRO ANTES DO IR   409200
CBS DESEMBOLSADO DIRETAMENTE    123 41
Alíquota CBS sobre o Lucro30%20,5%

Os percentuais não devem ser levados em consideração, primeiro que a CBS é sobre o valor agregado e não sobre o lucro antes do IR. Mas, mesmo assim, é importante para mostrar que a contribuição não interferiu no resultado empresarial. Os percentuais acima de 12% se justificam pelos seguintes motivos: 

. Cia. ALFA não tem crédito direto sobre as despesas de pessoal e na compra das frutas (R$ 700 x 12% = 84). Por outro lado, recebeu o “direito” de se creditar em R$ 9 nas compras das frutas. Assim, 84 – 9 = R$ 75. Se reduzir 75 de 123, encontramos R$ 48, que daria 12% do LAIR de R$ 400, sem a subvenção de R$ 9. 

. Cia. BETA não tem crédito sobre as despesas de pessoal e bancária (R$ 66,40) e obteve crédito reduzido sobre o frete contratado de empresa no SIMPLES (2,72% em vez de 12%). Portanto, deixou de se creditar de R$ 17, conforme explicado a seguir: 

– Despesas de Pessoal de R$ 41,40 x 12% = R$ 4,97

– Despesas Bancárias de R$ 25,00 x 12% = R$ 3,00

– Despesas de Frete de R$ 97,35 x 9,28% = R$ 9,03  

Assim, se a Cia. Beta tivesse desembolsado mais R$ 17 de CBS nas compras, teria reduzido seu pagamento de R$ 41 para R$ 24, representando 12% sobre o LAIR de R$ 200. 

O SETOR DE SERVIÇOS VAI TER AUMENTO NA SUA CARGA TRIBUTÁRIA? 

As empresas tributadas pelo lucro presumido que atuam na área de prestação de serviços estão reclamando muito do PL nº 3.887/2020, alegando aumento na sua carga tributária. Reitero que se trata de mudança cultural, pois o tributo passará a ser cobrado por fora, acrescido ao preço, com total transparência para quem compra, ao contrário do que acontece atualmente. Não é possível fazer tal afirmativa sem fazer contas. Seria necessário analisar todas as compras das empresas, inclusive aquelas aquisições de bens do ativo fixo, que terão cobrança da contribuição e reduzirão o valor devido no final do período. 

O sistema tributário brasileiro é dos mais embaraçosos do mundo, por isso existem alguns pontos que necessitam de estudo aprofundado para melhor avaliação. Neste momento, com poucos dias de divulgação de um documento com 61 páginas com o refino técnico que a complexidade do tema traz, seria prematuro marcar posicionamento. De qualquer forma, algumas situações serão registradas para estudo, confirmação, reflexão e, se possível, ajustes: 

– As empresas do SIMPLES NACIONAL poderão ser prejudicadas, pois suas aquisições das empresas tributadas pelo lucro presumido ou lucro real terão a cobrança (por fora) da CBS com alíquota de 12%. Esta CBS será reconhecida como despesa, pois as empresas do modelo simplificado terão que pagar sua alíquota sem descontar qualquer crédito. E as empresas do SIMPLES não se beneficiam de ter mais despesas, pois toda sua tributação é direcionada para suas receitas.  

– Empresa varejista que teve seu ICMS cobrado no modelo de substituição tributária pela indústria poderá retirar o ICMS da base da CBS? Teoricamente deveria, mas é possível que o valor correspondente ao seu ICMS não esteja disponível. 

– Setores que pagavam PIS e COFINS pelo modelo monofásico (concentrado) passaram para a regra geral na CBS: bebidas frias, produtos de higiene e beleza, medicamentos, automóveis e suas peças.  

– O Setor de telecomunicações, mesmo sendo composto por grandes grupos econômicos, tributados pelo lucro real, sempre pagou PIS e COFINS pelo método cumulativo, com alíquota combinada de 3,65%. Analisando as DFs do Grupo Vivo de 2019, encontramos uma Receita Bruta de R$ 58 bilhões, com insumos adquiridos de terceiros em torno de R$ 20 bi. Os tributos (PIS, COFINS, ISS ou ICMS) eram cobrados por dentro e estão incluídos, tanto na receita quando nos insumos. Porém, análise inicial traz a percepção que o Grupo Vivo (Telefônica) terá aumento no pagamento da CBS, comparativamente ao pagamento anterior de PIS e COFINS em torno de 50%. O problema é que isso poderá representar aumento no preço dos serviços. 

– A situação descrita para o setor de telecomunicações pode se repetir em outros prestadores de serviços que estavam no chamado “modelo misto” de PIS e COFINS: educação, concessionária de rodovias, serviços de telemarketing, hotelaria e outros. No caso, um fator preponderante na análise será em relação ao CBS pago na aquisição de bens do ativo fixo. 

– As entidades imunes e isentas deixarão de pagar PIS sobre a folha de pagamento. Com isso, se não tiverem outras receitas fora do seu objeto social, devem economizar anualmente 12% sobre o valor das despesas de pessoal. 

CONCLUSÃO 

O Brasil precisa, com urgência, modificar a forma como extrai da sociedade um terço da riqueza produzida por ela. O Congresso Nacional, após direcionar esforços para minimizar os impactos da Covid-19, parece inclinado e colocar a REFORMA TRIBUTÁRIA na ordem do dia. E faz muito bem. O modelo tributário brasileiro é excessivamente complexo, desorganizado e caótico. Não há condições de atrair investidores internos e externos com o modelo atual. Os problemas listados na primeira parte do artigo explicam isso. Mas, o desafio será enorme, por conta de muitos interesses regionais, políticos e individuais. O Projeto de Lei nº 3.887/2020, apesar de tardio, é o modelo de legislação que precisamos. Lógico que necessita de intensos debates e de aprimoramento. Mas é a base inicial da mudança na forma de cobrar impostos sobre o consumo. Seria um sonho desenvolvimentista integrar ICMS e ISS na ideia, no racional trazido pela proposta da CBS. A distribuição do dinheiro entre os entes estatais não passa (e não deveria passar) pelo contribuinte, este teria que pagar apenas a sua CBS pelo valor efetivamente agregado na cadeia produtiva. Além de simplificar a tributação sobre o consumo, o Brasil precisa reduzir encargos sociais, tornar a geração de empregos menos onerosa para a empresa e mais atraente para o empregado. Mas será necessário entrar num campo minado de muitos interesses. E vencer o temor e preconceito contra o imposto sobre transações financeiras (CPMF…), que entendo deveria ser cobrada apenas das pessoas físicas e com alíquota reduzidíssima, mais como instrumento de combate à sonegação. 

Mas, o mais importante, a meu ver, será mexer com coragem na forma de tributação sobre a renda, deixando as empresas com uma alíquota baixa de IRPJ, para que possam ter estímulo de investimentos, mas cobrando das pessoas físicas um IR justo e progressivo, conforme a renda de cada um. Abraço.

Confira versão em PDF do artigo (com tabelas em boa resolução), aqui.


[1] 1,8% são destinados ao Banco do Nordeste; 0,6% ao Banco da Amazônia; e 0,6% ao Fundo do Centro-Oeste, gerido pelo Banco do Brasil. Os mesmos percentuais são extraídos do Imposto de Renda.

[2] Para mais informações, acessar o vídeo https://www.youtube.com/watch?v=huDVaagnHtw&t=47s.

[3] http://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas

[4] Ver https://reformatributariaja.com/2020/07/18/palestra-o-regressivo-modelo-de-cobranca-de-irpf-parte-2/

[5] Embora as instituições financeiras paguem a CBS, é outro modelo (cumulativo), portanto, todas as despesas de juros e tarifas diversas não permitem crédito da CBS.

[6] Será destacado na nota fiscal, conforme regulamentação que será feita pelo Comitê Gestor do Simples Nacional.

[7] Calculado conforme Anexo III da Lei Complementar nº 155/16.

[8] Como a legislação concedeu um crédito presumido que não foi suportado pelo vendedor de frutas, representou um ativo da empresa compradora (Cia. Alfa), com contrapartida em receita, a qual não deverá ser tributada pelos impostos sobre o lucro e receita, além não deverá ser distribuída.

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