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Obituário

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“Se Deus quiser
Um dia eu morro bem velha
Na hora H quando a bomba estourar
Quero ver da janela”
(Rita Lee)

Vínculo 1542 – Tanta coisa que poderia discutir nesta semana intensa. As mortes, esperáveis, mas nem por isso menos dolorosas, de David e Rita. A Guerra. As sombras.

A artista que era a própria alma do rock brasileiro, sempre presente em qualquer lugar onde a multidão multigeracional simplesmente dançou neste meio século desde que o sonho morreu. Como os Rolling Stones, para quem ela fez um memorável show de abertura quando eles se apresentaram no Maracanã, as décadas recentes do trabalho de Rita são obscurecidas por uma sequência de canções icônicas ao longo de uma década. Mas não será assim praticamente todo o pop bem-sucedido?

Na virada entre os 80 e 90, quando tive uma banda pop em que Jacqueline Muniz era a cantora, havia um único cover em nosso curto show de menos de 50 minutos: “Saúde”, de Rita Lee. Meus heróis morreram de câncer, como escrevi umas semanas atrás.

David Miranda era um jovem político de esquerda com um tremendo potencial de futuro, sinalização de um potencial de revitalização de um PDT que ainda padece de estar sob o projeto narcisista-tecnocrático de Ciro. Embora com fé nesse projeto, sua adesão ao partido apontava para a retomada da diversidade populista do PDT que Brizola e Darcy criaram.

Não o conheci pessoalmente. Amigos que o fizeram descreveram uma pessoa em que as palavras deslumbramento e inocência se aplicavam numa forma positiva, diferente de como esses atributos são em geral avaliados. Fosse numa live, fosse na pista do Galeria em Ipanema, David não era uma pessoa que estava ali formal, etiqueta conservada em formol, mas alegria.

Infecção generalizada. Perdi um primo na mesma idade que David, da mesma compleição de força, nessa mesma época da banda. Também minha sogra, anos depois, que lutou em coma contra uma infecção por um tempo muito próximo ao de David. Essa é uma situação em que hordas e hordas de antibióticos são lançados num corpo cuja capacidade de combate praticamente se foi.

Não deixa de ser uma analogia ao que acontece na Ucrânia, essa primeira parte da quarta guerra mundial. A Ucrânia se prepara para a quarta derrota, a quarta destruição de sua capacidade de impor resistência. Como as sucessivas aplicações de antibióticos, o apoio militar do Ocidente não vai levar a uma reversão do quadro de derrota. Mas prorroga um estado de coma, a ilusão de que as coisas possam ser retomadas.

O presidente Lula e o ex-presidente Trump, duas figuras que operam sob a inocência de que as coisas possam ser negociadas e resolvidas, sob a ideia de que a razão comum opera melhor que os modelos e clichês com que burocracias, academia e imprensa entendem o Mundo, pregaram o fim imediato da guerra, sem se preocupar com que lado vença.

Esta semana se celebrou o fim da Segunda Guerra. E os russos anunciaram sua saída de um dos acordos, sobre armas convencionais, do que foi o fim da terceira guerra, a guerra fria, aquela bala da qual escapamos nessa virada dos 80 para os 90.

Mas eu não vou enveredar aqui sobre a guerra. Isso vai ficar para daqui a algumas semanas, quando a contraofensiva que não aconteceu tiver tomado o orweliano caminho de esquecimento da grande imprensa.

Houve um importante evento político neste continente nesta semana, um alerta. No Chile de tão sérios terremotos a derrota da esquerda nas eleições para a comissão constitucional é um terrível cataclisma a ser exumado por toda a esquerda latino-americana. Ou melhor, por todo espectro que vai da centro-direita à esquerda. Mas isso a gente chega lá daqui a pouco.

Eu já tratei um pouco do assunto do plebiscito noutro artigo. E minha primeira leitura foi criticar este que é o mais paradigmático dos projetos de esquerda “Powered by SorosTM”, o governo Boric. Na Santiago que visitei em janeiro de 22 tive a sensação de déjà-vu de estar no Portugal de 46 anos antes, onde um discurso radical juvenil convivia com uma realidade econômica não propriamente otimista e com uma população basicamente conservadora. E há quem irá pôr a culpa no descolamento da base não governamental de Boric nessa derrota. Há quem irá culpar o fato de que o governo continuou essencialmente neoliberal. E essas são duas explicações verdadeiras. Parciais e confortáveis, mas verdadeiras.

O problema é que a verdade é monstro de muitas faces, muito mais que as dez cabeças de Ravana. E num artigo de Ociel Alí López no RT encontro elementos de uma interpretação alternativa, minha interpretação particular de Trump, do Brexit, de resultados eleitorais que vão contra “a democracia” nesse Ocidente no qual estamos inseridos.

Há uma revolta populista contra um establishment que perdeu o “mandato do céu”. Sem crescimento para a maioria da população sob a globalização neoliberal, com a destruição das pequenas burguesias por conta da submissão dessas aos mecanismos de globalização/tecnologia (plataformas como Uber e Amazon, franquias), há uma revolta acontecendo claramente tem quase uma década, uma revolta que sucede o grande apagamento dos 99% que se insurgiam contra o salvamento dos ricos na crise de 2008.

O establishment acredita que o que é servido ao eleitor é um there is no alternative. Mas isso é uma ilusão: há o inaceitável, o botão de “pare o mundo que eu quero descer”. E no Chile a vitória (pluralidade de votos, não a maioria) da direita herdeira de Pinochet sinaliza o descontentamento de muita gente. Se esse descontentamento não se dá através de uma contestação à esquerda, parabéns: a tomada desta pelo aparato “Powered by SorosTM” foi sucesso. A esquerda mundial virou uma variante ômicron, espalhada, mas de baixíssima letalidade.

A ilusão de que o populismo pode ser extinto ou contido num sistema democrático, de que as pessoas se conformem no campo restrito do que é ditado pelos campos civilizados do discurso doutrinário das elites, é uma ilusão. O esforço feito para minar um populismo universalizante de esquerda levou a esse populismo de direita a devorar, descontrolado, as direitas ocidentais. Infecção e coma.

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