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O copo vazio da finada nova ordem mundial

Paulo Moreira Franco – Economista do BNDES

“It’s deja vu all over again.”
(Yogi Berra)

Vínculo 1537 – “Nada importante aconteceu hoje.” Uma frase atribuída a Jorge III, rei da Inglaterra, única nota em seu diário em 4/7/1776. Pelo menos é o que se diz nos episódios que abriram a última temporada de Arquivo X. Esta frase não me saia na cabeça enquanto, perplexo, ouvia palestrante após palestrante. Mas para que não houvesse a necessidade de algum excluído terceiro dia de evento, o ministro Haddad falou:

“Acho que o Brasil está numa situação favorável em relação aos seus vizinhos e ao resto do mundo. Nós não temos problemas geopolíticos, como a Ásia e a Europa se encontram hoje. Nossa inflação está mais controlada que no resto do mundo.”

Nos mesmos dias em que discutíamos o Brasil/BNDES para o século XXI, Xi visitava Putin. Segundo Xi, uma mudança que não acontece a mais de cem anos acontece hoje. Sim, as economias dos BRICS somadas ultrapassam o G7 se a conta for feita com PPP. A produção industrial chinesa supera a dos EUA e Europa somados. Século atrás algo semelhante aconteceu com os EUA tomando o lugar do Reino Unido, o dólar o lugar da libra. Século atrás os sociais-democratas russos chegaram ao poder, e a China é herdeira dessa revolução, e Xi alguém que não a nega.

Mas ali foi o primeiro (e único) momento que isso foi mencionado no Seminário e assim, de passagem, como se fosse uma situação qualquer. Ao longo dos dois dias a discussão toda rolou como sob a ilusão de que a ordem neoliberal (agora com green new deal!) voltara depois que o regime Biden foi implantado nos EUA. De que as letras mortas do desdentado acordo de Paris valem hoje, de fato, alguma coisa. Bem, já não havia SVB mas ainda havia Credit Suisse naquele momento.

“Fala sério, você não vem aqui pra caçar urso?” Essa piada clássica é o que me vem à cabeça quando ouço falar na pauta de sustentabilidade e vejo que China (5º maior produtor mundial de petróleo) sentou finalmente com Irã (sob sanções, 9º produtor, 4ª maior reserva) e Arábia Saudita (2º produtor, 2ª maior reserva) para conversar; que estabeleceu uma série de parcerias com a Rússia (sob sanções, 3º produtor, 6ª maior reserva). Não me convenço que foi para construir uma pauta de sustentabilidade visando atingir as metas do Acordo de Paris. Que a China tenha aprovado a construção de duas usinas de carvão por semana ao longo de 2022 não me parece sugerir que ela esteja tão engajada assim numa descarbonização abrupta.

Aqui uma pequena janela: não entenda, amiga leitora, que a questão do aquecimento global não é uma questão que eu ache de extrema relevância. Acho, e acho o bastante para saber que já era, que não há milagre da oncologia que nos livre do que virá. E acho que a China, que é quem mais investe em novas tecnologias que possam transformar o campo de produção/uso de energia, tem a mesma percepção. Mas o virá fica lá longe, algumas décadas, graduais décadas em que limite após limite serão rompidos. No presente muita gente tem dinheiro a ganhar com as curas milagrosas para o problema. Por exemplo, o mercado financeiro brasileiro produzindo “legítimos” investimentos verdes para colorir portfólios de investimento de papéis com requisitos de ESG. O Brasil desbolsonarizado é um lugar perfeito para produzir esses títulos. Não, não é Fundo Amazônia. São coisas que o Leblon e Faria Lima construirão e que vão parar na carteira de algum fundo de pensão de um estado democrata, com sua rentabilidade garantida pelo nosso independente Banco Central.

Ou, mais divertido ainda, o lá tão falado hidrogênio verde. Para quem é leigo na engenharia do negócio, hidrogênio como combustível estocável para ser usado em células de combustível foi um hype muito intenso no início do século. Uma célula de combustível é um processo no qual o hidrogênio é oxidado numa membrana, gerando água e mais energia elétrica do que numa queima dentro dos processos termodinâmicos tradicionais. Você não minera hidrogênio: você pega energia elétrica, quebra a água, e tem o hidrogênio, um gás extremamente volátil, inflamável, que realmente precisa de muita pressão para não fazer do espaço onde está um zeppelin. O que quer dizer que hidrogênio não é algo assim tão fácil de transportar. Creio que deva ser um pouco mais complicado que gás natural. Mas a ideia de você em tendo um excesso de eletricidade transformá-lo num combustível sem pegada ambiental, que permitiria carros bem mais leves do que com baterias elétricas, é uma ideia tentadora. Especialmente se você é uma empresa automobilística japonesa ou coreana que chegou atrasada no carro elétrico. E em havendo subsídios e capital barato, todos os tipos de negócio se tornam atraentes (e falo de subsídios de fato e não de taxas subsidiadas sem possibilidade de arbitragem de taxas), como mostrou o caso do fracking nos EUA. Num espaço doméstico, como num exemplo que vi duas décadas atrás, quando o hidrogênio ainda era incolor, a ideia era pegar energia eólica no Golfo do México e no Texas e mandar hidrogênio pela rede de gasodutos americana.

Daí que possamos exportar quantidades significativas de hidrogênio verde é mais ou menos como a ideia de que possamos exportar água. Água se exporta na forma de produtos que são intensos em água, como carne de vaca. Mas o custo energético de exportar água em si é proibitivo, especialmente numa situação em que energia encarecerá se houver redução de uso de combustíveis fósseis. Hidrogênio é energia para uso em carros no ambiente doméstico. Qual seja, não faz muito sentido botar num navio para levar para a Europa. O nosso “verde” é uma condição de subsídio que faz sentido dentro de determinado universo jurídico/tributário. (E tudo isso supondo que alguma descoberta tecnológica permita células de combustível sem uso de platina como catalisador – sim, a membrana leva platina).

Não colocar em primeiro plano a questão internacional foi a principal deficiência do seminário. O edifício da rules-based international order desmoronou. O excesso ocidental no uso de sanções, com a pá de cal que foi o congelamento de reservas russas, está levando os países a um reposicionamento quanto ao dólar e as instituições desta ordem. Para os países asiáticos, sejam os tigres menores como a Indonésia, sejam aqueles onde Bolsonaro “recebe” joias (aliás, que falha do Montezano em não ter descoberto para Jair que na caixa preta do BNDES tinha muitos porta-joias!), a ficha já caiu. Qualquer Europa que sair ao final da guerra será um espaço economicamente esvaziado, implodindo demograficamente sob enormes pressões políticas internas. Ah, ia me esquecendo: cinco dias antes teve uma eleição “estadual” na Holanda. Um partido criado três anos atrás, o BBB (Movimento dos Cidadãos Agricultores) foi o mais votado em todas as províncias. Pauta: combater medidas de redução da agricultura holandesa para atender a uma redução dos níveis de emissão de nitrogênio.

Não se sabe qual ordem internacional teremos ao final deste processo. Mas sabemos claramente que o período de hegemonia do dólar encerrou. O banco que a Presidenta presidirá nos próximos anos é uma das instituições deste futuro, embrião de algo que possa substituir o Banco Mundial. A forma como o FMI está tentando interferir em países africanos pode levar o governo chinês a definitivamente constituir, junto com os países do Oriente Médio e a Rússia, uma nova arquitetura de financiamento das questões de crises de endividamento sem passar pelos processos de destruição e pilhagem promovidos pelo FMI. China e Índia não irão parar seus processos endógenos de desenvolvimento e crescimento em função da hegemonia anglo-americana ou da agenda climática. Tendo a cobertura da produção russa de commodities agora liberta de suas relações com o Ocidente, eles estão bastante seguros hoje para ditar um caminho próprio.

Paris, do Acordo, do Clube de Paris, está em chamas. E isto não é uma metáfora.

►Leia também: “O copo cheio dos juros altos”, do mesmo autor.

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