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Um ano, uma semana

Paulo Moreira Franco – Economista, aposentado do BNDES

“The future has taken root in the present”
(Merlin em Excalibur)

Vínculo 1532 Um ano, uma semana. Dois dias depois de começado aquilo que os russos denominaram de operação militar especial, concretamente a guerra estava acabada. A força aérea ucraniana deixara de existir como força operacional. Numa situação racional a Ucrânia teria sentado, negociado algum tipo de reconhecimento da independência das repúblicas separatistas e do reconhecimento do retorno da Criméia à Rússia.

A guerra não se resume às fronteiras daquilo que deveria ter sido chamado de antiga República Soviética da Ucrânia, uma construção administrativa tão artificial quanto aquelas construídas pelo imperialismo na África. Como nas guerras mundiais anteriores, esta é uma escalada de consequências não esperadas. Sim, esta é uma guerra mundial.

Em homenagem aos americanos e ingleses que tanto esforço fizeram, fazem e farão para que a guerra vá até suas últimas consequências, o texto está construído por bullets a esmo, as balas perdidas derrubando uma combalida Globalização. Vamos a elas:

– Entre 14 e 21, o território ocupado da oblast de Donetsk foi preparado para travar uma guerra de trincheiras contra os russos. Não que em 22, quando os ucranianos se preparavam para atacar o Donbas, eles pretendessem imediatamente fazer isso. Mas num momento seguinte de contra-ataque russo, o território estaria preparado. Como costumava me dizer uma amiga, o problema dos pedidos a Shiva é que ele atende a seus pedidos. Os russos, que tem o péssimo hábito de estudar história – e nela as Verduns e Borodinos onde se estraçalharam exércitos em busca da vitória –, simplesmente foram lentos, graduais, usando de artilharia, tempo e paciência. Há uma forma de brincar de trincheiras sem ser élan vital, e ela consiste em ver quem tem mais garrafa vazia para vender. Os ucranianos passaram quase uma década criando uma Maginot moderna. Já os russos, produzindo munição e mantendo as devidas fábricas ativas.

– Em 1914 a Inglaterra planejava submeter a Alemanha a um grande boicote econômico. Até a burguesia inglesa foi contra, pois a ela não interessava acabar com importantes negócios só porque uma luta hegemônica se travava. O Ocidente achou que bastaria aumentar significativamente o conjunto de sanções já existentes sobre a Rússia, e esta entraria num tipo de colapso econômico que a levaria a ceder. Problema: a Rússia se imunizou durante esta quase década contra os eventuais boicotes. Um país de dimensões continentais com autonomia energética pode fazê-lo (hum, vocês lembram de outro país com esse par de características?). A principal (para não dizer a única) arma que o Ocidente tinha fracassou.

– Os russos concretamente (ainda) não estão travando uma Guerra, mas realizando uma operação militar limitada. As principais unidades russas estão posicionadas em território russo ou em Belarus. O que quer dizer que há muita “garrafa vazia” pra se escalar a guerra ainda. O mesmo não pode ser dito do Ocidente. Nas décadas que seguiram à reunificação alemã e à dissolução da URSS, os EUA reduziram sua presença e seus arsenais na Europa e os países europeus reduziram significativamente sua prontidão e sua capacidades logísticas. Fora isso, andaram realizando o pivô para o Pacífico (posicionando forças de forma a mostrar os músculos para a China e a Ásia em geral). Qual seja: qualquer intervenção da OTAN no conflito exigirá, no mais otimista dos prazos, muitos meses para ser preparada. Coisas como fazer uma Zona de Exclusão Aérea não são viáveis não apenas porque os sistemas antiaéreos russos varreriam os aviões americanos do ar: não há uma estrutura de aeroportos capazes de operar os aviões necessários na Polônia e na Romênia. Um significativo investimento em adequação teria que ser feito.

– Quão mais sofisticado um equipamento, mais necessária a equipe de manutenção que vai cuidar dele. Há uma grande ilusão sobre os pedidos ucranianos de equipamento. Eles não só vão requerer tropas da OTAN para operá-los (“mercenários” poloneses, americanos, ingleses, franceses): vão ser necessários mecânicos, equipamentos, peças. Tudo isso envolve muita gente, muita coisa a ser transportada, mantida, alimentada. Há limites de quantos “mercenários” possam ser “voluntariamente” produzidos no Ocidente para operar esse novo exército ucraniano para substituir o que está sendo gradualmente sangrado na linha de frente atual.

– Uma tendência que começou significativamente no Iraque e no Afeganistão, a utilização de forças mercenárias “nacionais” em paralelo às forças militares tradicionais, se consolida na Operação Militar Especial. Mas se a Blackwater/Xe/Academi serviu mais como força para executar missões de segurança e “proteção”, o Grupo Wagner concretamente está executando a parte ofensiva da guerra num momento em que as grandes setas vermelhas ainda não foram traçadas no mapa. Um sintoma da globalização ou do enfraquecimento do Estado Nacional – o que não necessariamente é a mesma coisa.

– A posição da China hoje é análoga, em certo sentido, à posição americana na primeira metade da Grande Guerra. Naquela época havia uma brutal dependência de mercadorias americanas para manter a sociedade e o aparato de guerra funcionando nas potências da Entente. A ilusão de que o imperialismo daria um tipo de dominância/sustentação não funcionou sequer para o Reino Unido. Hoje a fonte de mercadorias é a China. Não sei se é chegado o momento “Adam Smith em Beijing” de transição hegemônica, não sei se vem uma mítica multipolaridade (devoto de Braudel, não acredito em multipolaridade). Assim como a centralidade simbólica de Londres como centro financeiro começou a corroer significativamente ante à realidade material americana século atrás, o mesmo pode ser entendido hoje entre Wall Street (e seu red light district que é a City), e uma China que ultrapassa os EUA hoje até na produção científica.

– O aparato militar americano após a vitória na Guerra Fria evoluiu em duas dinâmicas. A primeira delas foi uma concentração do Complexo Militar Industrial em poucas empresas extremamente insuladas, lucrativas, produzindo armas cada vez mais caras e “sofisticadas”. O sintoma maior disso é o F-35, um avião que concretamente não se sabe se de fato funciona ou funcionará um dia. A segunda foi a transformação das forças armadas americanas numa força de esculacho especializada em operar em condições desiguais de força contra gente mal equipada, mal treinada e de más intenções. O sintoma disso é que a totalidade do comando do Exército americano hoje é de Rangers, uma infantaria leve capaz de grandes feitos pessoais, mas de baixíssima utilidade num confronto contra as armas combinadas russas.

– Esqueçam o aparato de imprensa ocidental, as Reuters, NYTS, BBCs, CNNs, GloboNews. Elas são um instrumento de propaganda cada vez mais descarado, inconsistente, alheio a realidade do que acontece nesta guerra. O fato de que a dita “extrema” direita possa estar errada em muitas coisas (e estão) não quer dizer que eles estejam errados na sua crítica à manipulação de/por esses meios. As coisas se tornarão cada vez mais absurdas pelo fato de que a revolta com à destruição da qualidade de vida desse Ocidente Atlântico vai ficar cada vez mais intensa. Há que se tomar cuidado também com o uso abusivo de conceitos como geopolítica ou hegemonia (para dar dois exemplos): essas palavras tem um significado histórico, expressam relações cujas sutilezas escapam muitas vezes a leigos como pessoas comentando em vídeos ou tomando cerveja em Ipanema.

– Quando termina a Guerra? Na melhor das hipóteses, quando os russos, tendo capturado Odessa e Kharkov, sentarem para negociar um acordo onde o que remanesce de Ucrânia vira uma Costa Rica, sem forças armadas. Isto implicaria num reconhecimento americano da validade de todos os plebiscitos que levaram Criméia, Donbas e Novorussia a se juntarem à Federação Russa. Chance? Baixa, bem baixa. O cenário seguinte é a dissolução da OTAN com a crise política alemã decorrente do entendimento gradual das pessoas de que o atentado contra o Nordstream não foi contra a Rússia, mas contra a Alemanha. Se não for normalizado o fornecimento de energia num preço que torne viável a sobrevivência da indústria alemã, as próximas eleições serão cataclísmicas, com a chance do equivalente alemão da coalizão governamental Cinco Estrelas-Liga que houve na Itália, que seria uma composição do AfD anti-Europa com o Die Linke, a esquerda alemã. Data: segundo semestre de 2025. Portanto, anotem 2026, ano em que em cá havendo marolinha Lula se reelege, como ano que tem tudo para ser muito tumultuado, não importa o que aconteça até lá.

– Entre a pressão de se manter com o alinhamento em relação ao Ocidente que sempre estivemos e a realidade prática de estarmos nos BRICS, o governo Lula vai ter que cortar um dobrado nos próximos meses. O fato de que o atual Ministro das Relações Exteriores foi embaixador em Washington não contribui nesta situação. O Brasil não ter se abstido na votação contra guerra, como o fizeram China e Índia e, segundo Pepe Escobar, sequer ter informado previamente isso aos parceiros dos BRICS, foi um erro diplomático grave em minha opinião. Mas lembremos que Lavrov e os chineses não nasceram ontem e sabem muito bem as pressões que nosso governo sofre, pressões que nem sempre permitem a ele ser um “anão diplomático”. A que se tomar cuidado extra, pois conexão a emocional/ideológica de certos elementos no Governo Lula às agendas do Governo Biden é uma ilusão que pode ser fatal os interesses do país no momento.

Faltou falar do desmantelamento americano, refletido em sintomas como o acidente de trem em Ohio. Mas isso é assunto mais longo, complexo, polêmico, a ser tratado em outra ocasião. E não vai faltar oportunidade: catástrofes no funcionamento da infraestrutura e do aparato produtivo americano estão se tornando quase tão comuns como os massacres em escolas.

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