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Canibalismo à Trois

Paulo Moreira Franco – Economista, aposentado do BNDES

Vínculo 1528 – CAMARGO MOÇO  Ô Luca, ô Luca, não é isso não, teu pai não deixou marca? Mas cada vez que começa uma assembleia num sindicato, a luz baça, teu pai está lá, cada vez que um operário, chapéu na mão, entra na Justiça do Trabalho, teu pai está lá, cada vez que, em vez de dizer países essencialmente agrícolas, dizem países subdesenvolvidos, teu pai está lá, cada vez que dizem imperialismo, em vez de países altamente industrializados, teu pai está lá, cada vez que fecham um barril de petróleo na Bahia, teu pai está lá… teu pai é um revolucionário, sim…

LUCA  …Petróleo, quilovates, toneladas de aço, megatons, você também só consegue entender o mundo nesses termos, não é, companheiro? …o assalto à natureza… olha, muita felicidade no vestibular.

(Rasga Coração – Vianninha)

Uma manhã chuvosa na primeira semana de dezembro. Alerj, Banerjão, pertinho. Minha melhor amiga recebendo o Prêmio Marielle Franco de Direitos Humanos das mãos de Renata Souza, recém-reeleita como a terceira pessoa mais votada para deputado estadual (num Estado do Rio onde Bolsonaro ganhou de 56,5% a 43,5% de Lula, onde o Cláudio Castro foi reeleito no primeiro turno com três entre cada cinco votos). Houve uma mulher mais votada que ela no Estado: a pedagoga Daniela do Waguinho, primeira entre os deputados federais fluminenses, e que, em nome da diversidade e da construção de uma maioria no Congresso, é agora ministra do Turismo. Sob ela, na Embratur, o mártir Marcelo Freixo, que na eleição para Câmara de Deputados de 2016 foi o segundo mais votado, com mais de cem mil votos a mais do que Daniela em 22.

Trinta e seis homenageados. Na sua maioria, ONGs, e quando não a ONG em si, alguém que tem uma ONG por trás. Algumas alemãs ou subsidiárias destas. Uma parte significativa com atuação centrada na Maré.

Menos de um mês depois, Lula sobe a rampa do Planalto. Uma catadora entrega a faixa, possivelmente recolhida do lixo depois da faxina que deve ter sucedido à providencial fuga de Jair, o grande vilão. Uma última missão deste para tirar o olhar daqueles que em coro gritaram “sem anistia” sobre a responsabilidade das forças armadas na catástrofe administrativa dos últimos quatro anos? Me lembro de uma única visita do presidente Lula ao auditório do BNDES: o lançamento do programa de apoio a cooperativas de catadores de lixo. Momento extraordinário, muito pouca gente do Banco gastando sua hora de almoço com o presidente Lula na primeira década deste século.

Por mais bonito e tocante que tenha sido – e foi lindo, e foi um marco, e melhor não imagino como poderia ter sido –, não vi ali subindo com Lula o carro alegre, cheio de um povo contente. Não a tragédia de um partido de esquerda construído também sobre o movimento social (e não só o sindical) chegando (de novo) ao poder, mas a farsa do que é a versão neoliberal, fragmentária, da esquerda contemporânea. E na raiz do problema, o Terceiro Setor.

Até algum momento depois de 68 a idealização de um militante de esquerda é Manguari Pistolão, o protagonista de Rasga Coração, de Vianninha. Alguém ligado ao Partido, às causas nacionais, a uma atuação política no mundo do trabalho. A revolução não está nele, mas ele está na revolução.

Para além de Luca, seu filho, com sua pauta hippie e a covardia de quem vê seus atos na satisfação de sua individualidade, a idealização do militante de esquerda de hoje é um ongueiro. Isso muda radicalmente as coisas?

Qual o problema de um movimento social que não se dá mais a partir do Zé do Caroço, mas se sustenta em organizações formalizadas que se estruturam numa rede profissional, focada? Qual o problema de uma política construída a partir dessas organizações e não de partidos, sindicatos e questões relacionadas ao território? Como isso aconteceu?

Fazendo uma história curta, sucinta e caricata: Estados Unidos, pós-guerra. O sistema eleitoral e o establishment das grandes corporações virtualmente impedem a formação de um partido estritamente em linhas de classe, seja um partido social-democrata clássico, sejam as fracassadas tentativas de um partido populista da pequena burguesia. Nesta sociedade complexa e em permanente modernização, não se tem propriamente uma “democracia” no sentido da township de Tocqueville, mas a poliarquia de Robert Dahl. O que poderia ser visto como os limites práticos da implementação de uma república na verdade traz um elemento de controle de elites e da capacidade de determinadas paixões fortes, minoritárias em determinado momento, se articularem em agendas que se tornam a discussão política da vez da comunidade. Atingida a meta, esses grupos se dissolveriam, não mais necessária essa coalizão, essas associações. A luta por direitos civis nos cinquenta, sessenta é o grande exemplo disso.

Do outro lado do Ocidente, onde há partidos estruturados em interesses de classes ou em concepções ideológicas menos difusas, há temas que estão de fora do âmbito dos consensos estabelecidos, das pautas cristalizadas no corpo dos partidos e instituições. Há organizações religiosas que estão fora disso, excluídas pela laicização definitiva dessas sociedades. Há uma Sociedade Civil em contraponto ao Estado, elementos da percepção de que este segundo talvez tenha interesses próprios distintos da primeira, a quem ele em teoria serve. Ou talvez porque um sistema representativo por voto secreto e universal não necessariamente reflita as hierarquias escondidas sob a Sociedade Civil (coisa que algumas votações de uma década para cá tem mostrado).

Há também em ambos os lados do Atlântico organizações dedicadas à produção de pensamento e de discurso, as fundações, os think tanks. Ao contrário de universidades, partidos, imprensa, esses são locais com focos e interesses bem definidos, e tanto quem trabalha lá quanto quem financia sabe muito bem aonde se quer chegar.

Uma ONG/Fundação é algo com um foco limitado, tratando de (fragmentos de) um (hiper)objeto específico: natureza, discriminações, acessos. Uma ONG depende de um funding privado, que deriva de contribuições voluntárias de pessoas físicas e jurídicas emocionalmente ligadas àquele tema. Embora elas tenham muito trabalho gratuito envolvido – e tanto Naomi Klein em Sem logo quanto David Graeber fizeram interessantes críticas de quanto isso é problemático – o ongueiro precisa comer, vestir, morar, mover-se.

Fora isso, uma organização não vai se extinguir só porque sua razão de existir não mais existe. Ela vai tentar se reinventar, ela vai tentar eleger algum ponto minúsculo que ainda exista como uma ameaça tão grande quanto o restante das coisas que ela já obteve. Diria que há uma alma nas organizações, essas inteligências artificiais analógicas, que recusa a morrer assim como seus componentes, os humanos, continuam precisando pagar suas contas.

Décadas depois, temos a ordem neoliberal.

Democracia se constrói com consensos e concessões, com reciprocidades que por vezes não coincidem no tempo. Por mais que partidos tenham seus princípios, o papel de ser um representante é o de negociar. Ou de se opor como alternativa concreta de poder (como o PT o fez nos 80/90, não como o PCO o faz). Isso envolve o adiamento ou mesmo o sacrifício de pautas. Isso não é factível para organizações que têm um tema. Esse tema é algo sempre imediato, sempre importante.

A política, ao invés de se fazer nesse movimento no tempo buscando um (não tão) abstrato desenvolvimento feito de bases lunares e carros voadores, passa a ser construída em cima dessas pequenas pautas, pautas (não tão) concretas, pautas que tocam o pessoal, as sensações de culpa e justiça, sentimentos que diria estão muito mais na esfera religiosa (mesmo que laica) do que na esfera econômica. O que pode ser interessante para as pessoas no curto prazo, mas cujas implicações não necessariamente são estudadas no longo prazo. É como se a retidão e o mercado fossem a mão de Deus.

Do ponto de vista de uma ordem neoliberal, sair da orientação à missão de uma ordem no estilo do Primeiro Mundo até os setenta e do Segundo Mundo até que só sobram os chineses, é a consagração da sociedade aberta popperiana, de um mundo de liberdade. Os temas passam a empolgar o que é vivido, visível e parcial. As agendas se tornam complexas, a colagem de pedacinhos passíveis de serem medidos que são, por exemplo, as ODS. Nada disso compromete os interesses do grande mundo corporativo. Nada disso interfere em como as estruturas de finanças dominam o Sistema.

As ONGs/Fundações, a visão fragmentada de política que elas criam, são a matriz dessa superestrutura da ordem neoliberal. A fixação de que esta ordem é apenas pelo mercado impede de se entender a crescente revolta de extrema direita de uma pequena burguesia esmagada pela globalização à qual se junta com a tensão nacionalista de um operariado industrial sendo extinto no Ocidente. Subordinar o desenvolvimento às agendas sociais, a política às agendas identitárias, elevar a sensação de justiça acima da racionalidade fria do cálculo utilitarista e dos direitos já estabelecidos em função das quais vidas foram construídas, significou, significa amarrar a sociedade numa falta histérica. Não, não estou a clamar nem por Gary Becker nem por Peter Singer, não estou querendo que práticas de discriminação sejam perpetuadas ou retornem, que direitos sociais sejam revogados ou retrogredidos. Mas eleger esses pontos a categorias sagradas, fazer de cada igrejinha dessas algo a ser premiado, centro a ser almejado da política, é algo que está levando o Ocidente como um todo à paralisia, à desindustrialização.

A adesão à Sociedade Aberta é o grande risco que esse governo enfrenta. Há uma Guerra Mundial acontecendo, um eco da Terceira Guerra – a Guerra Fria –, como a Segunda Guerra foi eco da Grande Guerra. Entre a multipolaridade e o pacote de TINAs, há pela frente uma importante escolha do governo Lula, com significativos descontentamentos, quintas e sextas colunas a se insurgirem quando o caldo realmente começar a entornar na Eurásia.

Um registro: antes, na mesma sessão solene, um dos maiores intelectuais deste país, Muniz Sodré, pai de nossas colegas Marúcia e Melissa, recebeu a medalha Tiradentes. Também um carioca entre suas múltiplas personas, agora oficializado, reconhecido.

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