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Abobalhados

Paulo Moreira Franco – Economista, aposentado do BNDES

“A este sucedeu Jair, de Galaad, que foi juiz em Israel durante vinte e dois anos”.

“Tinha trinta filhos que montavam em trinta jumentinhos e possuíam trinta cidades que se chamam ainda hoje Havan­vot-Jair, situadas em Galaad”.

“Jair morreu e foi sepultado em ‘C’me on, man’. (Juízes, 10)”
 

Vínculo 1526 – Domingo. Almoço na casa da quase nonagenária mãe, TV no SBT passando um programa de auditório com elementos de reality. Consulto @ggreenwald e descubro que minutos atrás o zaralho rolava em Brasília. Mudo a tv para a GloboNews. Aguento perto de meia hora e jogo para a CNN. Nesse breve período, já eram terroristas.

Marx fala da repetição da tragédia enquanto farsa. Linear demais isso. Na terra da tragédia rodrigueana, há apenas a hipocrisia pequeno-burguesa fazendo um trágico mambembe, vilanias canastronas. Pensemos que a farsa aqui vira a comédia de erros, e, neste sentido, celebremos a comédia que remanesce desde que o que sobrou dos autos medievais aqui chegou.

6 de janeiro foi uma Farsa. 8 de janeiro foi uma Micareta. Terrorismo, insurreição, golpe: tudo isto são outras coisas, nenhuma delas de fato presente nesses eventos, por mais que as pessoas que os façam sintam a realidade histérica de suas encenações em seu coração. A forma de um glossário me parece adequada a tratar do assunto.

TERRORISMO: terrorismo visa causar emoções – medo, raiva, revolta, ação impensada. O Puma que explodiu no Riocentro foi um atentado terrorista fracassado conduzido por um par de membros da ativa do Exército brasileiro. Naquele momento a ditadura já transicionava para um regime democrático que formalmente só viria em 90, e setores insatisfeitos dentro deste aparato burocrático, que fez ocupação de boquinhas durante a finada administração de Jair, viram uma bomba explodir no colo viril de dois membros do Exército. Mas se você quiser um caso recente de terrorismo, de típico terrorismo de direita, pense no assassinato de Marielle Franco. Nenhum aviso, nenhuma razão aparente, ninguém assumiu. Marielle era alguém que incorporava em si todas a placas a serem rasgadas pelo bolsonarismo: favelada, negra, mulher, lésbica, esquerdista. O objetivo foi causar algum tipo de desordem à moda daquela que Antifa/BLM fizeram no EUA em 20? De fazer com que favelados, negros, mulheres, LGBTQIA+ e/ou esquerdistas ocupassem violentamente a rua, afrontando uma intervenção do Exército comandada por Braga Neto, recentemente candidato a vice de Bolsonaro? Talvez, mas se foi isso nossos inimigos não entendem o quão humanos e tranquilos são os cariocas ante a uma barbaridade que, no fundo, toque o coração de todos.

Algumas centenas de abobalhados tirando selfies em patrimônio público sendo depredado de forma não sistemática não é terrorismo. É um tipo criminalizável de babaquice. Destruição sistemática de infraestrutura pública – como linhas de transmissão de energia – por grupos localizados, isso é terrorismo. Já há leis o bastante para isso.

Cabe aos ministérios da Justiça e da Defesa entenderem que os meios de força ali presentes devem obediência a seus comandos e prontidão em serem usados. E devem ser usados sem dó nem piedade.

FARSA: os mesmos órgãos de imprensa que venderam a você as armas de destruição em massa no Iraque, as armas químicas na Síria, a manipulação russa das eleições americanas, a Lava Jato, além de outros sucessos menores em termos de “E a Oceania sempre esteve em guerra com a Lestásia, não é mesmo?”, vendem a grande insurreição de 6 de janeiro de 2021. São os mesmos órgãos que não estão vendendo os twitter files ou não venderam a Vaza Jato. Ou se o fizeram, o fizeram na forma de limited hangout, aquele tipo de revelação que é como um ator pelado em horário nobre, onde o essencial fica invisível. Tipo Panama Papers, onde muito pouco se soube dos serviços que a Mossak-Fonseca andou prestando nestas terras. E quanto tempo levou a ficha do Imortal Merval para cair em relação ao seu herói Sérgio Moro?

Então cara leitora que caiu no conto da Insurreição: você sabe que só houve uma morte violenta na invasão de 6 de janeiro – uma veterana das forças armadas covardemente assassinada com um tiro pelas costas dado por um policial do Congresso? Você já se perguntou como se conseguiu abrir uma porta extremamente pesada e blindada, impossível de ser aberta por fora? Ou por que a presidente da Câmara, uma deputada octogenária que de inexperiente não tem nada, decidiu que forças de segurança adicionais não eram necessárias em torno do Congresso, sabendo das manifestações que haveria? Você já ouviu falar em Ray Epps? Procure. Mas não o faça nas versões americanas da Folha ou do 247.

Há uma série de perguntas em cima desse cuidadoso descuido que resultou no 6 de janeiro que serão respondidas nessa próxima Câmara americana. Em conjunto com os twitter files, a sensação de ter sido trapaceado pelas agências de três letras e pela grande imprensa será imensa. A menos, claro, que as pessoas sejam histericamente insufladas em suas emoções com eventos como a micareta de 8 de janeiro. Neste sentido, ela realimenta a ilusão americana da grande conspiração de direita mundial. Até os otários da direita americana acreditam nisso.

MICARETA: é um carnaval fora de época, fora do momento histórico onde o carnaval de verdade ocorre, fora de seu lugar geográfico verdadeiro. Os meios materiais e simbólicos são transplantados para outro lugar, onde as pessoas “vivem” essa experiência carnavalesca sem ser, de fato, carnaval. Mas é como se fosse.

Você não participou de 68, não pintou a cara em 92? Sem problema, jovem! Você não foi um indignado, você não ocupou o parque Zuccotti ou a praça Syntagma, sem problema! Temos uma manifestação difusa, de dezenas, centenas de milhares de pessoas na Cinelândia. Pra quê? Pra nada! como no proverbial poema sobre o gaúcho galopando. Claro, essas manifestações ajudam a criar o clima para o golpe que derrubou Dilma (observação amigos que gostam de governos democratas: Goulart foi derrubado num governo democrata, Dilma foi derrubada num governo democrata. Governos democratas podem ser bons para os americanos, mas em termos de política externa definitivamente não são nossos amigos).

A maior de nossas micaretas foi provavelmente a campanha das Diretas, quando as pessoas foram às ruas sob o pretexto de se obter eleições diretas para presidente e tudo que de lá trouxemos foi uma camiseta com “diretas já” e um belo acordo de elites costurado em torno de Tancredo Neves para garantir que a ditadura seria transicionada de forma adiabática, sem o capeta na forma de Leonel Brizola numa eleição direta. Mas ao pegar o metrô com aquela massa cheirosa em 84 você já sentia que havia algo de estranho naquela multidão, que aquele era um evento político performático e não transformativo.

Um outro exemplo de performático: durante a parte violenta das manifestações de 13, quando o choque curiosamente ficou parado esperando o comando do governador Cabral para agir contra uns black blocs que tacavam fogo na ALERJ, fiz um contorno pela Praça XV para chegar do Banco às barcas, quase nove da noite. Na praça XV vazia, três figuras: um cara com um moicano espetado e duas moças trajadas em preto e rendados rasgados, como numa sessão de fotos da Sex da falecida Lady Vivianne Westwood. Naquele tempo, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens.

8 de janeiro, dia em que se celebram os aniversários de nascimento de Elvis Presley e David Bowie, a Esplanada dos Ministérios é tomada por essa micareta amarela. Além de não ser um lugar apropriado para isso, pois não há como de fato se estabelecer segurança, sequer as forças policiais fizeram um faz de conta decente de que estariam ali para fazer alguma coisa. 8 de janeiro era também uma semana após a posse do Lula. Sequer protesto num dia formalmente relevante, como no 6 de janeiro americano. Apenas um bando de abobalhados cometendo seus crimes, registrando-os em redes sociais, na ilusão taxista de que o Estado não irá atrás deles.

Essa ilusão precisa ser curada. Não há como ter avanço civilizacional sem que esses setores de pequena burguesia (e reacionários de burocracia pública) conheçam a experiência de diálogo com o Choque, esta instância de expressão da voz do poder público que favelados fechando estradas, torcidas organizadas, professores em processo de reinvindicação e outras categorias de proletariado e lumpen conhecem tão bem. Sim, o pessoal do Choque pode ver essa inflamação coxinha como composta por parentes e irmãos. Mas nada que a transferência de município e o processo disciplinar contra recalcitrantes não resolva.

Mas o fato é: essas multidões de otários não são terroristas. São só pessoas que desconhecem que há leis, e que elas também se aplicam a eles.

HIERARQUIA: hierarquia é uma palavra-chave que as pessoas esquecem nessa história toda. Forças armadas, polícias militares, serviço público em geral, são instituições baseadas na hierarquia. Agir à margem desta não é quebra da hierarquia, mas quebra da instituição. A reforma que Castelo fez em 65 visou – e com sucesso – acabar com as quarteladas que perturbaram a vida política brasileira na década anterior. Há normas claras no regimento dessas instituições.

O que faltou até o momento em que escrevo? Para começar uma nota contundente do comando do Exército (e de cada uma das outras forças) dizendo que as manifestações são uma violação das tradições de respeito à lei e à ordem do Exército brasileiro, que a participação de militares da ativa e da reserva será alvo de sérias punições, e que a presença de elementos da família militar é reprovável e impacta negativamente para a instituição como um todo e seus membros individuais.

O fato é que qualquer acordo feito para se colocar um ex-presidente do TCU comandando a Defesa parece comprometido no momento. Há que o presidente Lula, cujo grupo de transição não incluiu um grupo no tema Defesa, entender que ele é o chefe. Que ele nomeia, demite e promove quem bem entender. E isto qualquer um que fez ECEME sabe muito bem. Os civis podem não saber, mas qualquer um, reformado ou na ativa, tendo sido das milhares de boquinhas ou ficado na sua nas forças, qualquer um deles estudou isso.

O mesmo vale para os governadores e suas PMs. Neste sentido, as pragas do Egito que cairão sobre Ibaneis serão uma forma didática de um poder maior relembrar aos governadores que responderão pelos atos feitos pelos seus subordinados no dia do juízo. Me lembro de Padre António Vieira usando deste domínio de fato em algum momento dos seus Sermões (que faz mais de quatro décadas que não visito).

JUÍZES: depois de Sansão, cujo poder vinha dos cabelos, temos Xandão, capítulo novo do sétimo livro, cujo poder talvez cesse por ridículo se uma fuchsiana peruca lhe for imposta à cabeça. Concordo com o Greenwald que o que acontece no Brasil hoje está ao arrepio da lei. Mas estamos assim desde que Lula foi preso, desde que o processo sobre o triplex no Guarujá foi adiante. Os órgãos de imprensa que silenciaram sobre isso, os políticos que fizeram campanha em cima dessa palhaçada, prestaram um grande desserviço ao país. Pois se peças como O Mensalão e seu domínio de fato foram peças ficcionais razoavelmente encenadas, Curitiba foi uma atrocidade. E Curitiba é o que produziu idiotas como os que depredaram nossos palácios, que acamparam à porta das instalações militares esperando a intervenção superior, como o motorista do Uber que me trouxe de volta domingo falando das pessoas que são soltas pela Justiça.

Quando o gênio de Xandão será posto de volta à garrafa? Quando aquelas pessoas que até alguns anos atrás citavam Agamben vão se dar conta que há aí um imenso Rodes, um colosso de soberania não democrática violando normas processuais, direitos legais? A colegialidade que levou às arbitrariedades cometidas contra o presidente Lula foi no mesmo Judiciário, em variantes do mesmo discurso “civilizacional”, de defesa da democracia contra a barbárie. E com o apoio de setores de nossa mídia, e com o apoio de outros que saíram abraçando sarados jurídicos do lavajatismo para anos depois vir pedir unidade de esquerda em torno de si.

É esse mesmo conjunto de farsantes que vai dizer que foi terrorismo em 6 de janeiro, que foi terrorismo em 8 de janeiro, e que nosso governo deve se alinhar com um regime Biden que conduz o Ocidente para uma debacle geopolítica e militar como não se conhece há séculos. É o mesmo conjunto que vai pedir leis que virão convenientemente a ser usadas contra sindicalistas, esquerdistas, movimentos sociais ou qualquer outro grupo que se organize em oposição ao establishment.

Em silêncio, o bestializado Jair espera na Flórida o momento em que fugirá, heroico, para um lugar onde não possa ser extraditado. Quem sabe a Itália de Meloni, quem sabe algum canto das Arábias. Esqueçamos esse inútil e seus filhos, que só servem para causar emoções fortes: sem anistia! Deve se centrar naqueles que de fato conduziram atos administrativos lesivos. Que fomentaram (ou se omitiram) na quebra de hierarquia. Deve ser um processo meticuloso, sem catarses. Feito ponto a ponto a sistema de pontos.

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