Pular para o conteúdo Vá para o rodapé

O Canibalismo em Quatro Atos

Paulo Moreira Franco – Economista, aposentado do BNDES

“Sozinha no silêncio do seu quarto
Procura a espada do seu salvador
Que no sonho se desespera
Jamais vai poder livrar você…” (Erasmo)

Vínculo 1520 – O que vem escrito a seguir, alerto, é esparso, cenas desconectadas. Ou não. Mas isso, leitora, cabe a você, cabe aos artigos que virão.

De primeira o apartamento em Laranjeiras. Certamente mais de cem metros de sala em diferentes ambientes. Uma reunião política, mobilização por um personagem que não se acredita que exista na encenação política nacional: um pastor petista, candidato à ALERJ. Um monte de pessoas de São Gonçalo, outro de PMCs e pequenos burgueses. E entre eles, Isaura. Ou melhor, sua intérprete, neste momento que escrevo transicionando os governos, mas ali ainda (fracassada) candidata a deputada federal.

Candidamente Lucélia fala de sua luta com Chico Mendes, com os povos da floresta, os índios, os quilombolas, todos esses à margem pelos quais ela lutaria no Congresso. Intervenho: pergunto a ela se ela tem consciência que São Gonçalo tem mais habitantes do que há quilombolas. Na verdade, cometi um erro: o IBGE em 2021 estimou 1,133 milhão de moradores de áreas de quilombos (não necessariamente quilombolas) e 1,098 milhão em São Gonçalo. Mas o fato é que ela não concorria a deputada pela Bahia ou pelo Acre, mas estava ali pelos votos de São Gonçalo. E as pessoas de São Gonçalo potencialmente eleitoras do presidente Lula, por mais que sejam solidárias às demandas de justiça para outras pessoas, estão mais preocupadas com o retorno de empregos de qualidade e com carteira assinada (que foi o meu ponto na interpelação).

Castro venceu no primeiro turno. O conjunto de elites cariocas que se vê ainda como portadores do Nacional, sem encarar o violento, perverso mundo doméstico das populações de sua cidade, de seus arredores, encarar isso de forma mediada, no confortável pedestal olímpico de quem não pega o BRT no dia a dia, é uma das razões pelas quais o estado está do jeito que está.

Segunda situação. Jabbour e Ouriques, dois comunistas mais diferentes é difícil imaginar. Um debate no canal Resistentes no YouTube. Tema: as futuras eleições brasileiras, o plebiscito chileno. O surpreendente: um diagnóstico comum sobre a não aprovação da nova constituição no plebiscito. De forma resumida, identifico três pontos.

A importação de mecanismos de defesa de comunidades indígenas, que constam dos novos arranjos constitucionais de países como Equador e Bolívia, foi mal-recebida pelo grosso da população. Nesses países há uma maioria de origem indígena e que se estrutura em parte em organizações sociais derivadas de estruturas pré-colonização. Isto não ocorre no Chile: lá as comunidades indígenas não são uma pluralidade relevante.

Um segundo ponto foi a adoção de todo o conjunto de pautas identitárias contemporâneas num país que ainda é eminentemente conservador do ponto de vista moral. O terceiro ponto: toda essa criação de direitos se dava sem se contestar propriamente os arrancos neoliberais, dos quais o Chile foi possivelmente a cobaia nos 70-80. Qual seja: os processos de criação de direitos visavam um conjunto épico de excluídos nos quais a maioria da população não se via.

Você se dá conta que a Constituição que temos – não o monstrengo criado pelos penduricalhos enfiados pelos golpistas de 2016, mas a Cidadã de Ulisses – foi obra do Centrão original? (e que certas elites nunca perdoaram isso). A Constituição de 88 foi uma derrota da visão progressista na época, uma derrota do liberalismo puro, uma derrota de um projeto instruído, civilizacional, sul-maravilhoso que foram os projetos da comissão de notáveis do Afonso Arinos e da Comissão de Sistematização da própria Constituinte. Há atrasos que vêm pra bem, há males da moralidade pavimentando o inferno das boas intenções.

Terceira cena. Cozinha aqui de casa, três pessoas conversando, uma delas profissional do campo social trabalhando na… bem, não era na Zona Sul nem na Grande Tijuca. Pessoa de esquerda-esquerda mesmo, dessas perto das quais talvez mesmo o Ouriques possa ser chamado de reformista. Do Nordeste. Lá pelas tantas solta o argumento de que os cariocas são vagabundos, que não querem nada com trabalho, que falta seriedade. De forma fácil eu poderia ter desqualificado o argumento como sendo racista (e até tentei, timidamente). Mas olhando com calma, não era o caso. O que me surpreendeu é que no fundo era o mesmo argumento dos pequenos comerciantes portugueses amigos do meu pai. Aquela pessoa era imigrante no Rio. E imigrantes são “batalhadores” por definição. Não há para o imigrante razão imediata de se sentir corresponsável por uma ordem iníqua que eles não criaram.

Nos EUA, desde a eleição de 2020 começa a haver uma guinada dos imigrantes para o Partido Republicano. Em parte, porque parte deles é pequena burguesia e acaba tomando consciência de qual é o partido de sua classe. Em parte, porque os mecanismos de redução de desigualdade vão exatamente contra esses imigrantes recentes, com uma disciplina moral que não foi construída nos descasos individualistas do capitalismo americano. Mas aqui há que se entender que o Brasil construído com as migrações da era republicana, sejam externas, sejam internas, se entende diferente do país que surgiu independente duzentos anos atrás. E isto é claro nos mapas eleitorais. Isso interage com a questão do Chile.

Fiquei quadrado? O que mudou do mundo de quando eu era jovem, eu que em 68 achava que “estudante” era algum tipo de hooligan nos noticiários de TV (a primeira vez que ouvi a palavra) e que em 86 votei em Herbert Daniel para deputado estadual? “Ooh woo, I’m a rebel just for kicks, now…”. Minhas percepções e entendimentos são muito diferentes dos de minha filha, imersa no Tumbrl e no reddit, de algumas outras pessoas nascidas em torno da virada do século com as quais convivo e convivi nos anos recentes.

Conto meus amigos evangélicos de uma década para cá (sem contar suas famílias), constato que são dois, como duas são aquelas hoje mulheres trans chamadas Natália que conhecia como homens no meio da década passada (por que Natálias? Seria por conta da Contra – ou esta também sinthome?). Meu mundo pessoal é um mundo enviesado. Mas não o é também o seu mundo, cara leitora?

Como se pode reconstituir a maioria que Lula teve quando até o PCdoB se rende a celebrar a diversidade como o feito de seu sucesso eleitoral mais recente neste estado? Alguém realmente acha que o mundo moral evangélico possa dar match com o conjunto das pautas identitárias? Que entre tolerância e proselitismo vai uma distância?

O que fez de nossa pólis Babel?
Bolívar lanzó una estrella que junto a Martí brilló
Pra tudo, tudo se acabar na terça-feira

Associação dos
Funcionários do BNDES

Av. República do Chile, 100 – Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20031-170

E-mail: afbndes@afbndes.org.br | Telefone: 0800 232 6337

Av. República do Chile 100, subsolo 1, Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20031-917
E-mail: afbndes@afbndes.org.br
Telefone: 0800 232 6337

© 2024. Todos os direitos reservados. Desenvolvido por: AFBNDES

×