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Abortos

Paulo Moreira Franco – Economista, aposentado do BNDES

“As pedras do caminho, deixe para trás
Esqueça os mortos que eles não levantam mais”
(Caetano/Bob Dylan)

Sitting on a sofa on a Sunday afternoon
Going to the candidates debate
Laugh about it, shout about it
When you’ve got to choose
Every way you look at this, you lose
(Paul Simon)

Final de junho. Mando para uma amiga advogada, também nascida nos sessenta como eu, um artigo do Greenwald tratando da decisão da Suprema Corte americana que revogou sua própria interpretação anterior que tinha criado o direito ao aborto nos EUA (devolvendo aos legisladores estaduais o poder de deliberar sobre).

“Tô nem aí pro stf americano”
“Vivo no Brasil”

“Você também vive”
“Você acha que o norte-americano está preocupado com nosso stf?”
“Patético esse interesse”
“Complexo tupiniquim”

Vínculo 1519 – Num certo sentido ela tem razão. É capaz de eu acompanhar mais algumas minúcias de política americana hoje do que as da brasileira. Talvez porque mal eu começava a andar foi dado um golpe militar neste país onde nasci, e minha recém-chegada mãe viu desligada a democracia da qual ela tanto gostou. Um quarto de século se passou para que ela pudesse votar em Brizola para presidente. E, na origem da Redentora, a paradigmática administração democrata dos direitos civis, Kennedy e LBJ. Aliás, recorde que era Obama o presidente no Golpe recente que houve cá. Nas intervenções militares na Líbia e na Síria. O mundo não começou com as fanfarronadas de Bolsonaro e a incompetência de Trump. Mas algo se quebrou no processo político, tanto lá como cá. Ou não? Bem, é isso que pretendo explorar.

Pra começar, faço isso hoje, não na quinta-feira seguinte à eleição, mas na quinta da semana seguinte à eleição. E ainda não se sabe qual a composição da Câmara nos EUA (435 deputados em distritos uninominais). Isto é totalmente estranho, não só estranho em relação às eleições no resto do mundo, mas em relação ao que acontecia nas eleições americanas meia dúzia de anos atrás. Causa perplexidade ver que a Califórnia, terra do Vale do Silício, é um dos lugares onde a contagem ainda irá demorar.

Historicamente, os níveis de impopularidade da administração Brandon-Harris teriam levado a uma grande vitória da oposição. Historicamente, o partido de oposição costuma crescer na eleição parlamentar que acontece no meio do mandato de um presidente (EUA tem mandato de dois anos para deputado e seis para senador). Historicamente, o desempenho da economia – nível de atividade, de emprego, de inflação – é crítico neste resultado. E Brandon tem sido um fracasso, me perdoem os que cultuam brandonomics por aí (entre os quais se incluem os dois ótimos economistas que conduzem o Missão Desenvolvimento – já a Lavínia é uma economista formidável, mas não sei a posição dela a respeito).

Por que essa não catástrofe aconteceu? Por que sequer sabemos os resultados?

Pelo andar da carruagem, a maioria republicana não deve chegar a dez cadeiras. No Senado os democratas passam a ter uma maioria concreta (contando que os dois independentes na prática são democratas: um deles é Bernie Sanders!). Para se ter uma ideia, Clinton perdeu 54 deputados em 1994, Obama perdeu 64 em 2010, Trump perdeu 42 em 2018. Bush ganhou 3, pouco mais de um ano depois dos aviões terem acertado as torres gêmeas.

Algo mudou no processo eleitoral? Algo mudou no processo político? Sim e sim.

Do ponto de vista do mecanismo do processo eleitoral americano, houve uma mudança significativa, algo que pode parecer uma expansão do processo democrático, mas que nós aqui, pelo teor das discussões que tivemos sobre o voto impresso, saberíamos como algo perigosíssimo. Os EUA têm mecanismos que nós não temos, tipo votar pelo correio. Historicamente isso era usado por militares fora de suas bases e por pessoas idosas ou enfermas. Sob o pretexto da Covid, no entanto, isso foi expandido para quem quiser e da forma mais leniente possível. Nem só de medidas “biopolíticas” se faz o Estado de Exceção do Amgben: por vezes de “pacotes de abril”. E certamente, sob a esmagadora pressão dos meios de comunicação – sejam os antigos, sejam as plataformas – mobilizados contra Trump, a Suprema Corte americana majoritariamente nomeada por republicanos se eximiu de discutir a legalidade de alterações executivas em processos que claramente deveriam ter sido discutidos e votados pelos legislativos. O voto pelo correio foi a grande razão da vitória dos democratas em 2020, não se tenha ilusões a respeito. E quem acha que ele teve o objetivo de apenas enfrentar a pandemia…

Ah, sim. Cada estado tem sua lei a respeito, cada estado tem sua própria forma de votar, com máquinas próprias, com regras próprias de contestação e recontagem. Cada estado tem sua regra de a partir de quando se pode votar pelo correio e em que condições pode fazer-se isso.

Que problema há nas pessoas terem a praticidade de votar pelo correio, depositarem seu voto num envelope numa urna coletora que está numa rua, numa biblioteca? Bem, peguemos um exemplo de onde os republicanos em 22 conseguiram confrontar o aparato de coleta de votos dos democratas: uma urna numa igreja. Imagine que ao invés de você ter o trabalho (e lá o voto não é obrigatório como aqui) de ir até o lugar onde está uma urna para votar na terça (que não é feriado) da eleição, você possa votar duas semanas antes numa urna que está convenientemente na sua igreja. Para começar, os debates eleitorais entre candidatos deixam de fazer sentido: eles ocorrem com votos já tendo sido executados, e, portanto, incapazes de serem alterados. Em segundo lugar, o voto acontece sob pressão da comunidade. Não se trata de uma decisão solitária, privada.

A campanha deixou de ser uma campanha de persuasão – convencer as pessoas a ir votar e votar no seu candidato – e passou a ser de construir aparatos de identificação e coleta de votos. Em raros lugares os republicanos entenderam isso (Califórnia, por exemplo).

Há quem diga que a questão do aborto foi crítica. De fato, parece que mulheres solteiras foram a demografia que mais pendeu para os democratas. E aqui vai um dos problemas da forma como a política americana acontece, os problemas de um sistema que é participativo e a participação voluntária e aberta.

Dependendo do estado e do partido, a escolha de candidatos se dá em primárias, quando eleitores votam para escolher quem será o candidato de cada partido. Isso não necessariamente leva a alguém que atenda às preferências de seu eleitorado, mas de um candidato que atenda o mais engajado setor de seus eleitores. Se isso ajuda na mobilização de uma eleição voluntária, já que essas pessoas devem estar mobilizadas para a eleição de fato, numa eleição em que as pessoas não estando mobilizadas votam assim mesmo a pauta desses engajados é, por vezes, radical.

Pegue-se a questão do aborto. A base engajada republicana é pela proibição do aborto, ou ao menos pela sua liberação em caso de “falhas da divindade” (estupro, incesto, risco de vida da mãe). A maioria das pessoas, no entanto, acredita que a mulher deva ter possibilidade de decidir voluntariamente sobre sua gravidez até um número razoável de semanas (15 semanas, por exemplo, como foi a lei estadual cujo exame de constitucionalidade levou a revisão da interpretação da Suprema Corte). Numa situação em que esse assunto se torna um dos temas centrais do processo legislativo, a escolha de um candidato dessa base engajada leva a uma candidatura que está contra a opinião da maioria das pessoas. Lembrem-se, voto em distrito uninominal: um deputado se elege com a maioria dos votos. Não há espaço para minorias ideológicas que não sejam maiorias locais em algum lugar.

Especialmente no que toca ao Senado e aos governos estaduais, parte do esforço democrata foi garantir que o mais radical dos republicanos fosse escolhido. Eles doaram dinheiro para esses candidatos em suas primárias. É como se o pessoal do PSDB doasse para fazer de Boulos o candidato a governador de São Paulo pelo PT.

Mas nem só os democratas tinham essa intenção. É nítido que a liderança republicana no Senado pouco contribuiu para que esses outsiders viessem a se tornar senadores. E aqui cabem uma série de cálculos maquiavélicos. A base radical engajada é bacana para fornecer energia e trabalho voluntário para as campanhas políticas. Mas não saia tentando de fato entregar o que ela quer. Primeiro, porque atingido o objetivo ela não tem mais porque lutar. Segundo porque o objetivo dela costuma estar fora do razoável e, portanto, fora do que o eleitor que pode mudar de lado deseja. E assuntos de interesse universal… bem, esses vão na contramão dos interesses de quem ganha dinheiro, quem dá dinheiro para campanha e, portanto, são assuntos que devem estar bem escondidos, subordinados.

Um Senado dividido tem uma grande virtude: basta um ou dois senadores traírem e se recusarem a votar algo e nada avança. Fácil de enganar a base, fácil de fazer a maioria se esconder covardemente de seu eleitorado. Se você ainda tem a desculpa de que não tem maioria, melhor ainda.

Tem mais o que se discutir, mas o outro lado da sociedade americana (e a ocidental, por tabela) se devorando por dentro vai na próxima semana.

Atotó Gal!

Associação dos
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