Pular para o conteúdo Vá para o rodapé

Os guias

Paulo Moreira Franco – Aposentado do BNDES

Exalo com voz cava
Os mais terríveis urros, vaticínios
A 100 mil anos luz
Da Palestina, da China e da Abissínia
Por raiva e desafio
Ao berço e à dinastia
(Tite de Lemos – Sueli Costa)

Vinculo 1428 – O que segue abaixo foi rapidamente psicografado ao fim da tarde de 12 de setembro de 2007 e imediatamente enviado, às 18h31, para três amigos funcionários públicos concursados de outras instituições que não o BNDES. Perdoem o uso de palavras e neologismos de baixo calão, mas trata-se de uma conversa com três héteros, de idade próxima à minha, os três à minha direita (sendo um deles inclusive fã de Jordan Peterson nos dias de hoje), os três menos europeus que eu, e nem todos votaram em Haddad no segundo turno. Segue:

Vindo agora, agora da apresentação do nosso presidente Luciano Coutinho sobre o novo processo de planejamento, sistemas, fill the blank e os bolsos dos consultores etc. o caralho a quatro, e eis cá umas notas que me passaram pela cabeça no processo, certas angústias, maybe I’m to old for this shit, “fala sério”, sei lá. Mas vamos às notas:

– Existe uma coisa chamada PPA. O PPA vai do exercício em que é realizada a Olimpíada até aquele exercício seguinte à Copa do Mundo. Qual seja do primeiro exercício fiscal votado numa administração até o último exercício fiscal votado por aquela mesma Câmara sob aquele mesmo presidente da República. Em função disso, por que raios alguém propõe um planejamento de longo prazo para o período 2009-2014? Vício de planos quinquenais? Incapacidade de fazer contas envolvendo os dedos de duas mãos? Aprés le terceiro mandato le deluge? Ou incapacidade de perceber que isto é uma empresa pública, sob os rituais gregorianos públicos?

– Os processos de planejamento do BNDES, sem exceção, envolvem dois tipos de seres: os burocratas lindões, gostosões, fodões pra caralho, que compõem a burocracia do Banco; e os consultores. Estes, um grupo tecnicamente dotado e avantajado de puxa-sacos, mãos do porte da de Cock-Knocker (personagem Jedi do filme de Bluntman and Chronic), dispostos a mostrar por a + b que uma boa grana gasta com seus amigos de sistemas dará uma pintura geral em todos os pressupostos e vontades dos burocratas fodões, tornando-os em algo sublime, tecnicamente perfeito, estado-da-arte, et caralhaterva.

E a pergunta que este funcionário público concursado faz é: e na sociedade civil, não vai nada? NUNCA (assim com maiúsculas, mas se preferirem, “nunca na história desse país”) o BNDES chamou a sociedade civil – seja o sistema S, as centrais sindicais, as universidades, o próprio ministério, o Conselho do Banco ou alguém por ele instituído e externo à instituição – para conduzir, participar, tomar um cafezinho que seja na porra do processo de planejamento estratégico. Nós, os burocratas iluminados, os bons, sabemos o que é bom para o país.

Será que ninguém se dá conta disso?

– A noção de evolução não chegou aos processos de planejamento. A ideia básica é: vive-se no erro, mas se mudarmos nossas práticas, nosso regime, nossas cuecas, tudo será melhor. Uma mudança, uma revolução definitiva (enquanto dure). Dou-me conta agora de quão motivação para classe média é esta porra de administração! Mas passada esta epifania e voltando ao texto planejado, será que esses seres são incapazes de perceber que o processo histórico que cria as instituições não é acidental? Que as adaptações em si, além de ineficiências, também carregam experiências?
Há que se pensar num planejamento/administração que seja darwinista. Não aquela bobagem daquele artigo no Valor, mas algo que dê conta da componente acumulativa do processo.

– Faremos tudo, e mais um pouco. And a pony! A finitude dos recursos, isso parece esquecido em certos momentos. Há horas que há de se ter culhões nos trade-offs, há que se assumi-los. Eu estou contente, você está contente, então quem está tomando conta do sabonete? Zero-sums, man, zero-sums… mind da zero-sums (<<fulano>>, lembrar de guardar isso para algum conto cyber-punk)… Mas vivemos num mundo de uma teologia do otimismo e da prosperidade. Talvez seja chegada a hora de uma jeba a la 29 para as pessoas perceberem-se mortais, limitadas, sinceras quanto ao que pode ser feito à frente.

– Não gostei de por três vezes ele ter falado em reestruturação empresarial, aquisição de empresas e “maracutralhas” semelhantes. Temo que este cidadão – que posso estar errado, mas me parece ter sido devoto do desenvolvimento da plantation de commodities de TI do eixo do Pacífico, a Coréia – queira ajudar nos processos de concentração industrial que imho, já excedem o necessário, o legalmente desejável, mas que atendem bem a um governo que gosta de privilegiados. Temo alguém que veja nas Chaebol mais coisas positivas do que negativas. Temo ver o escasso dinheiro do Banco aplicado na criação de candidatos a Carlos Slim. Isto não é o estilo brasileiro. Mas essa é outra discussão, mais longa.

Registro (ou desabafo?) feito,

abraços,

Paulo.

Bem, eu poderia invocar Chico Buarque pleitear retrospectivamente a Diretoria do vai dar merda (da série File Under: Cassandra Knows, Interesting Times: não à Diretoria, mas alertei por vezes alguns executivos dos níveis preenchidos por concursados da casa a não seguir certos caminhos – e isto eventualmente custou cargos, coisa que raras vezes me fez sorrir). Acho que peguei um rico veio do zeitgeist quando essa apressada anotação foi escrita, um entendimento de certas características ideológicas deste país que persistiam uma década depois. Alguns argumentos não eram estritamente minha visão, mas que faziam parte da parte do mundo que estava ao meu redor. Esbarrei nela tem uns meses buscando umas coisas em meus e-mails da década retrasada. Vocês fazem isso, olhar para o que escreveram 10, 20 anos atrás? O que achavam, quem amavam? Experimentem fazê-lo e quem sabe descobrirão que o passado é realmente um território estrangeiro.

O estrangeiro, no caso, sou eu na metade de minha passagem pelo Banco. Nesse momento em que escrevi isso eu pensava Economia de uma forma não distante de um Krugman, de um Bresser ou de um Carrasco. Eu confundia dinheiro com recursos, eu estava preso a um entendimento limitado das possibilidades do Banco e do Estado. A crise que explodiu em 2008 me levou a reformular minha concepção de economia, procurar outros conceitos, outros paradigmas. A crise da COVID me levou a outro choque, ainda em curso, que não tratarei aqui.

Em termos empíricos, dois grandes mestres me mostraram que o que eu julgava como prática econômica correta estava errado. Guido Mantega, ao fazer a versão à brasileira de expansão do balance sheet, não no Banco Central, mas através dos bancos públicos, expandindo os ativos desses bancos. Luciano Coutinho, a produzir empresas capazes, seja de ser grandes cash cows (no sentido literal e trocadilho), seja de assumir determinados abacaxis necessários ao país (como fabricarmos nossos próprios mísseis). Mas isso é ficha que cai qual Coruja de Minerva, no apagar das luzes de cada um deles. Se naquele momento eu entendia o mundo na estupidez típica de nossa imprensa, de nosso ressentido, reacionário empresariado, da ala mais medíocre de parlamentares que sequer conferem homônimos no Google, eles foram capazes de ver (e agir) de forma inteligente, fora da caixa estabelecida na época. Resgatando uma velha caixa, talvez… não, essa pode parecer uma caixa antiga, mas apenas parece. Obrigado, mestres.

Em paralelo, uma mudança teórica. Graeber, MMT, uma mudança no entendimento do que é dinheiro, do que é crédito. O cara que escreveu esses artigos no VÍNCULO do Golpe para cá foi engrossado, diluído por esses dois afluentes. Olhe-se no espelho e pergunte: “de que rio, eu?”

Eu, bandoleiro
Eu, o proscrito
Eu, o fora da lei

PS: Graeber! Eu não aderi de início ao PEA. E aí o Banco prorrogou o prazo de adesão. E quando, finalmente, resolvo ao menos acionar a opção (não estava aposentado pelo INSS ainda), na antevéspera do último dia de prazo, morre David Graeber. Debt, Bulshit Jobs: a Theory, The False Coin of Our Own Dreams, The Utopia of Rules: On Technology, Stupidity, and the Secret Joys of Bureaucracy… Olhem-se no espelho ao ler algum deles, e perguntem: o que sou, no que creio? Naquela manhã em que eu ia enviar meus papéis escaneados, sua morte funcionou como um evento de sincronicidade, um aviso a la Dupla vida de Veronique. A mensagem: “saí de Forte Bastiani. Não fica à espera de que um dia retorne algum governo decente e algo possa ser feito. O tempo não para, o tempo não volta. Você não é eterno e a esperança foi encontrada antes de ti por alguém”.

Mas a minha aversão a consultorias de planejamento estratégico continua a mesma..

Associação dos
Funcionários do BNDES

Av. República do Chile, 100 – Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20031-170

E-mail: afbndes@afbndes.org.br | Telefone: 0800 232 6337

Av. República do Chile 100, subsolo 1, Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20031-917
E-mail: afbndes@afbndes.org.br
Telefone: 0800 232 6337

© 2024. Todos os direitos reservados. Desenvolvido por: AFBNDES

×