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“Momento de Quadratura”

Paulo Moreira Franco – Aposentado do BNDES

Eles não sabem de nós
E os urubus continuam passeando a tarde inteira entre os girassóis.
(Blitz)

Vínculo 1427 – Por um par de vezes vi defendida, num evento no auditório do Banco, a desmobilização de parte significativa da carteira da BNDESPAR. Talvez tenha visto mais vezes, mas essas duas contam, pois foram vezes que alguém que não, por exemplo, um apologista do Regime Bolsonaro o fazia. Alguém com um profundo entendimento do funcionamento do Banco, com uma história na instituição, alguém com quem eu realmente gostaria de conversar sobre o assunto. Na primeira vez, isso até teve sintonia com o evento: um daqueles saraus de notáveis que o presidente Rabello promoveu. Na segunda, no entanto, o comentário causou certo desconforto: no evento dos ex-presidentes.

Pio Borges tem o que, a princípio, parece ser um bom argumento ao dizer que, sob o ponto de vista de alocação de recursos para desenvolvimento, a carteira da BNDESPAR é algo estéril. Esses ativos poderiam ser convertidos em ativos de outra natureza, ativos que representassem dívidas de empresas que realizaram investimentos. E é disso que estamos falando aqui: o que querem dizer os números lançados à esquerda do balanço do Banco, usando a representação tradicional de um balanço, aquela que aprendemos na escola. Os números num balanço têm significado – por exemplo, um volume enorme de títulos públicos e caixa propriamente dito quer dizer que uma instituição bancária não está propriamente cumprindo com seu papel de financiar empresas e famílias.

Por alguns eventos do CEBRI que vi, Pio não compartilha da visão arcaica de economia dos Bolsonaristas da Turma do Guedes e criaturas adjacentes. Ele me parece cada vez mais estar alinhado à conversão damascena de Lara Resende à MMT. O que quer dizer que dívida pública não é uma necessidade para financiamento do governo nem está sujeita às pressões de mercado, por assim dizer. A fixação de juros, por exemplo, é basicamente um ato político, sem impactos tão significativos assim sobre investimento, e a história recente da economia mundial é um bom exemplo disso. Vide as quedas de juros no período Guedes, por exemplo. O nível de atividade da economia tem vários motores, e isso é uma coisa que requer muito mais compreensão que aquela que interessa diretamente a banqueiros.

Qual o papel então das ações na economia hoje, qual o papel delas na carteira de um banco – e, afinal de contas, o Banco é um banco – e que eu entendo como os elementos que estão faltando nessa discussão?

A primeira coisa é esquecer qualquer papel das ações como elementos de captação de recursos das empresas. Isso é uma história como o papel do sexo é a reprodução: façam as contas, por favor! O papel das ações é servir de item de ativo no balanço de empresas e pessoas, forma de ter riqueza estacionada. Esqueça papos sobre renda: ninguém mais tem ações por conta do fluxo de dividendos para cobrir seus gastos e realizar poupanças. Secundariamente, elas têm servido para a remuneração de executivos e operadores financeiros, qual seja, da predação feita por esses agentes sobre as empresas e pessoas das quais eles são principais. Mas este segundo ponto não interessa ao nosso argumento aqui.

Estando no balanço do Banco com marcação a mercado essas ações podem representar lucro ou prejuízo em nossos resultados. Isso impacta concretamente o funcionamento do Banco, nos expõe a risco? Tirando as toupeiras do Tesouro ficarem possessas porque nosso pagamento de impostos e dividendos cairá, além da ficção de contas públicas sofrer algum abalo, NÃO. E aqui eu não faço críticas ao atual governo: já Mendonça teve seus problemas com esse conjunto de burocratas, Pio era um dos seus braços direitos na época. E não me venham com as ficções de Basileia pelamordedeus.

Antes de entrar no argumento do Arthur, em que o ato de vender essas ações pode ser questionado? Em primeiro lugar, a se acreditar nos mercado perfeito, a la Fama, o preço da ação em dado momento, já contém todas as expectativas futuras em relação àquele papel. Portanto, o preço que se vende uma ação à vista é sempre o preço certo, por mais que o TCU pareça desconhecer isso.

Concretamente, no entanto, as expectativas envolvem certo balé, e nisso a dança das cadeiras do mercado permite que se ganhe dinheiro. Por exemplo, se você tem a convicção de que Guedes se manterá firme na manutenção de juros historicamente baixos e que lá fora as políticas de QE continuarão até deus sabe quando, é óbvio que isto tem um impacto sobre o Bovespa. É óbvio que o mercado tenderá a ser comprador, especialmente de papéis de alta liquidez. Portanto, quando o Banco se desfaz de sua carteira, reduz essa pressão de demanda, torna mais fácil esse deslocamento de riqueza para esses papéis. Como me explicou uma vez um amigo, o que move o Bovespa são ETFs lá fora e não notícias aqui.

Mas do ponto de vista do Banco, interpretando-se o Banco como um banco qualquer, isso é um péssimo negócio. Você está se desfazendo de uma carteira cuja sinalização mínima é keep.

Só que o Banco não é um banco, e isto é um troço que as pessoas deveriam entender com mais clareza. O Banco é uma ferramenta de política econômica para produzir desenvolvimento, e, portanto, o argumento lucro ou prejuízo não é o mais relevante para discutir a pertinência de suas operações. O que quer dizer que tanto o argumento usado para nos defender na Bullish de que não houve prejuízo para o Banco, quanto o esforço da atual gestão de fabricar uma veracidade para as fake news do mundo bolsonarista no BNDES Aberto, são os dois lados de uma mesma moeda míope, de um mesmo falso moralismo que só vê resultados que interessam sem ver os processos que os produziram.

Em que a venda dessas ações foi problemática (e aqui acho que o Arthur errou o foco)? Em primeiro lugar, porque a destruição de ativos rentáveis do Banco quando ele está sujeito às ficções que regulam o restante do mercado financeiro compromete sua estabilidade e sua existência. Qual seja, para que a Casa não caia, se Montezano não quer brincar de banco de mercado (no que eu concordo com ele!), que ele pressionasse Brasília antes de executar seu dever de casa. Montezano hoje já carrega um karma: a inação nas questões relacionadas às vacinas, coisa em que se seguiu o espírito de cortes do Ministério da Economia e a caótica inação do Ministério da Saúde, mas que vai acabar sobrando para todos daqui a pouco tempo. O Banco não forçou barra, o Banco foi um obediente soldado nessa história, mas há evidências surgindo de que a dizimação do Regime Bolsonaro possa passar por aí. Portanto, somar a isso mais um “prejuízo” como aqueles tão bem mapeados por Newton em seu auto de fé contra o petismo não ajuda a escapar desse purgatório que virá. Tipo quem com caixa preta fere, com caixa preta será ferido – embora, de coração, ninguém mereça – tipo pau que bate em Chico bate em Francisco, e não estou falando aqui da peculiar vara de percutir panelas de Carluxo.

Em segundo lugar, parte dessa venda de ações é uma privatização branca. Isto quer dizer que a renda do que concretamente são ações de empresas de um tipo que são chamadas pela imprensa de monopolistas nos EUA e pertencentes a oligarcas na Rússia – aqui ainda chamamos parte delas de estatais – deixa de ser apropriada em parte pelo Estado brasileiro e passa a ser extração privada sobre um patrimônio natural do país e o conjunto de suas empresas e pessoas. Não sei o quanto isto deva e possa ser feito sem uma discussão maior do Congresso e da sociedade. Isso também pode atrair a tara punitiva do Sistema U, e possivelmente o artigo do Arthur pode ser um grão de areia nessa história, não mais nem menos que isso na criticalidade desse processo.

Tem um segundo problema no artigo, um problema que talvez já tenha discutido parcialmente nestas páginas, mas que certamente discuti com muita gente no Banco. O artigo segue o argumento antidevolucionista que a Área Financeira conseguiu empurrar para todos os presidentes até o Gustavo. A devolução do retorno dos anos do Coutinho pode ser uma ilegalidade (não acreditem que quando for do interesse a violação da LRF que é a devolução – e aqui escreve alguém que abomina essa lei – virá bater na porta de todos, a menos que o TCU seja devolvido às suas funções originais. O “prejuízo” das ações sequer é cereja nesse bolo, no máximo uma fruta cristalizada), mas está longe de ser uma imoralidade ou mesmo um erro. Obsceno é argumentar que esses recursos devem estar no balanço do Banco com o montante de ativos de liquidez imediata, títulos públicos e formatos de caixa, que o Banco carregou ao longo desses seis anos.

O excesso de recursos do Banco vem da contração da economia brasileira, da contração do investimento. O fato de que aos Bolsonaristas da Turma do Guedes não interessa como conceito a ação do governo faz com que, passado o Governo Golpista, o Regime que se constituiu cumpra com seu compromisso eleitoral de reduzir o Estado, com as consequências trágicas que estamos testemunhando. A geração de caixa para a devolução a toque de caixa é parte disso, deal with it. A covid matou com as perspectivas ilusórias de que investimentos seriam realizados em coisas como saneamento. Neste sentido, ele traz outro fracasso que evitou que o projeto em si fracassasse, mantendo a ilusão privatista.

A ausência de um plano alternativo para transformar essa disponibilidade de caixa é uma consequência ideológica de uma sociedade que foi convencida a manter o Estado longe da economia. Assuma-se isso. Abandonem a ilusão que o Banco viveu nas últimas décadas de que dá para continuar existindo com o Estado sendo eviscerado e/ou sem o tipo de interação bacana com os interesses do Centrão que impede Caixa e BB de serem tocados. Mas essa não é uma questão para a atual diretoria, para o Regime, mas para os funcionários que estarão no Banco nesta década que começou mal. Falta o Integração Competitiva deste momento da história, e a isto não chegar-se-á pela via de se repetir o que está no Valor. Como iremos executar o Great Reset?
Não pensem que a reflexão sobre isso virá de Guedes e dos generais. Virá de burocratas menores. De vocês se despertarem e se dispuserem a tal.

Nesta confusão toda eu gostaria de trazer a memória uma outra pessoa que passou pela presidência do Banco. Maria Sílvia veio também para fazer uma série de desmontes. Mas Maria Sílvia sentou com a Associação para discutir, por exemplo, a questão da TJLP. Se não havia espaço para mudança, havia ao menos algum tipo de compromisso com a transparência e com o diálogo, ou ao menos com a aparência dele (mesmo algumas pessoas importantes da hierarquia do Banco estavam alheias ao processo que se desenrolava em Brasília na época). E, nesse sentido, um dos problemas do Regime Bolsonarista no qual a atual administração se encaixa é a incapacidade de sentar com quem se opõe a ele para apresentar seus argumentos, uma incapacidade de seus atores centrais conduzirem o que é essencial no mandato burkeano do qual se julgam dotados: a política, a negociação de posições. Esse é um problema que passou a afligir o Banco após a saída de Levy, e é o ponto central das confusões dos últimos meses: a Diretoria tem que entender que ela deve ter diálogo com a AF e com o conjunto dos funcionários – e não apresentar fatos consumados sob um argumento técnico mambembe (o que não quer dizer errado) como sendo diálogo e participação. Isso não fere a autoridade da Diretoria nem a sua capacidade de tomar decisões, se o interesse for tomar decisões e não as outorgar simplesmente.

Como diria Olavo se não estivesse hoje totalmente dedicado a falar bobagens sobre política e filosofia, não se deixem dominar pelas quadraturas que Marte e Urano exercem neste instante sobre o stellium em Aquário. Tenham calma, sentem, conversem. Convivam. Não marcialmente, mas civilizadamente.

Associação dos
Funcionários do BNDES

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