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Gatos, dois pares

Paulo Moreira Franco – Economista do BNDES e, além de alergia, tem aversão a carnívoros domésticos. Ele convive com duas porquinhas da índia.

So first, your memory I’ll jog,
And say: A CAT IS NOT A DOG.
(T. S. Eliot)

1)
Vínculo 1412 – A menina vegana mora com a mãe, só. Comodidades de um imóvel em que cabem ambas. Rigorosamente, não tão sós: há também um par de gatos, alvo adicional dos cuidados da menina. Mais radical que a mãe, a menina impõe o máximo de isolamento em função da covid. Não que sua mãe seja um risco tão alto assim, mas certamente mais risco que ela, e certamente tudo o que ela não quer perder agora é esta reverência… perdão, referência. 

Numa das janelas, um ninho de passarinho. Nele um filhote, que se mete a entrar num cômodo (não sei ao certo dizer se sala, escritório ou quarto – por vezes há grandes imóveis de ambígua geografia) – e que, na sua inexperiência, se torna objeto lúdico dos gatos. A menina desesperada resgata o pássaro e o devolve ao ninho. Dá comida ao passarinho e espera que os pais retornem. 

No dia seguinte encontra o passarinho morto. Os pais não voltaram. O passarinho, acredita, morreu de frio. A culpa a consome por ter deixado a pobre criaturinha sem cuidados. Deveria tê-la carregado, aquecido, protegido. Projeta seus medos: falharia também no controle da mãe, na proteção dela contra o vírus que pode ser letal? Conseguiria conviver com essa dor, essa perda, com a solidão da ausência dessa estrutura cada vez mais presente de dedicação? 

À menina, digo: sabe dos canários de mina? Houve um tempo em que os mineiros entravam nas minas carregando um passarinho. Não que ele cantasse no escuro trazendo algum tipo de alegria em meio ao pó do carvão partido. Canário estava ali como a linha de frente numa carga de infantaria contra uma trincheira. Ele seria o primeiro a morrer em caso de um vazamento de gás, alertando os mineiros a fugir o mais rápido possível, a salvar seus pulmões de um outro tipo de sufocamento que não a covid. 

Ao contrário dos gatos, fixos aos territórios, alguns pássaros migram inacreditáveis distâncias. Pássaros não são criaturas da nostalgia, mas de um futuro que por vezes envolve perdas. Tão apegada à vida, a menina vegana por vezes não entende que os pássaros são descartáveis e, mesmo nós, empoleirados num movimento mágico entre a Coroa e o Reino, também mero brinquedo nos dentes de uma imensidão de pele azul. 

À menina, eu digo: considere que o pássaro morreu para lembrar que você inteira vive (ao contrário dos gatos, lá e cá tanto na interpretação de Copenhague quanto segundo John Constantine – noutra existência quem sabe mesmo ela e um só gato, uma mãe bem distante morando não tão distante, Lobo da Estepe totally math a defrontar-se desesperada contra os silêncios de seus demônios interiores… também copenhagues a existência humana). 

2)
Antes que a pandemia se imponha a moça escapa do concreto sem céu para um outro racionamento de metros quadrados, este de sublime paisagem. Mas o Sol da manhã não é capaz de iluminar a dissolução da alegria do Mundo, da Lapa, dos 150 BPM, do jazz na noite de terça. Trancada – em sua monografia, em seu isolamento, distante em quase um dia inteiro da família noutro estado – a depressão se instaura. Como outras tantas pessoas no mesmo estado, que dependem da própria vontade para realizar suas rotinas, a moça se acha paralisada. 

Que tal quebrar a solidão com um bicho de estimação? Um cachorro – sempre tivera cachorros. Aliás, mesmo aqui no Rio há a viralatinha de uma amiga que por ela abandonaria a dona na primeira oportunidade, certa de viver emoções como subir pra Santa Tereza vento no focinho de moto-taxi. Mas esse é um tipo de traição inviável (há que se inventar um “gravetto”, um aplicativo que conecte cães e mulheres… haveria tal coisa em As Partículas Elementares tivesse sido escrito hoje?). 

Portanto, arrumar um cachorro, alegre, saltitante! Um beagle, como o único cachorro de raça que ela teve, em sua casa no interior. O chato do economista chato, no entanto, sugere catar na internet alguma referência a cachorros em pequenos apartamentos. Em especial, beagles. Tanto no primeiro quanto no segundo vídeo encontrados no youtube faces femininas sem muita expressividade e com uma voz que sugeria o ritmo de uma tensão contida a tarja preta, Rivotril possivelmente. A narrativa: a destruição promovida por esta explosão de alegria juvenil que é um cachorro confinado. (Ainda não havia Cláudia Ohana, a mais completa tradução). 

Duas lições aprendidas: cachorro não combina com quitinete (ia me esquecendo de um detalhe: no bestiário da moça, latido que caiba numa bolsa de mão, como um chihuahua ou um shitzu, não é cachorro); em se tratando de animais domesticados, raça conta. 

E aí ela tomou uma decisão que, para uma devota de cães cheia de amigas com gatos como ela sempre foi, foi bastante controversa: comprar um gato. E depois outro. Um par de Sagrados da Birmânia, mesma raça da Choupette, a herdeira de Lagerfeld. 

Mas para isso houve uma conta de padaria feita por este freakonomista que lhes escreve. Você pagaria para escolher o temperamento de um animal que vai te acompanhar por uma década e meia? Para reduzir a probabilidade d’ele fazer rapel com suas cortinas? D’ele arranhar visitas desavisadas? Para conviver com um pelo vasto, vistoso, com um rabo empinado roubado de uma raposa, ronronando em seu colo? Você pagaria mais do que você paga por assinar a netflix para ter isso? Então não adote um gato: compre um. Aliás, dois, pois eles funcionam melhor em par.

Muita gente acha que pagar por um gato é um absurdo, que há muitos gatos disponíveis no mundo para serem adotados. Sim, há apostas dessas que dão certo, como também há criaturas com as quais você terá que se adaptar, estabelecer um modus vivendi de obrigações para com um bicho que vai dividir o espaço sem propriamente interagir com você. Um transeunte no seu cotidiano doméstico. 

Os gatos vão bem, a moça inteira, explicações foram necessárias para todas as suas amigas donas de gatos. Não a conta – a frieza dos números de um processo racional de decisão fere o imediatismo da decisão emocional de adotar um frágil gatinho abandonado, o pequeno gesto de tornar o mundo bonito naquele instante. Mas como na primeira história, não se deve antropomorfi(ni)zar o mundo, fazê-lo ao mesmo tempo espelho de nosso entendimento emocional, ao mesmo tempo anestesiado das dores. Não se deve decidir o longo prazo num impulso moral imediato. 

Mais uma vez o dia foi salvo pela economia.

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