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O morador do poço

Paulo Moreira Franco – Economista do BNDES

Vínculo 1384 – “Naturalmente, a aposta das vulgaridades indecentes de Berlusconi é que o povo se identificará com ele, na medida em que personifica ou encena a imagem mítica do italiano médio: ‘Sou um de vocês, um tantinho corrupto, tenho problemas com a lei, traio minha esposa porque sinto atração por outras mulheres…’. (…) Mesmo que Berlusconi seja um palhaço sem dignidade, não deveríamos rir dele; fazendo isso, talvez já estejamos entrando em seu jogo. O riso dele parece mais o riso louco e obsceno do inimigo do super-herói num filme do Batman ou do Homem-Aranha. Para termos uma ideia da natureza de seu domínio, devemos imaginar algo como o Coringa de Batman no poder. O problema é que governo tecnocrata associado a fachada de palhaço não é o suficiente: é necessário algo mais, ou seja, o medo. Aqui entra a besta de duas cabeças de Berlusconi: os imigrantes e os ‘comunistas’ (nome genérico que Berlusconi aplica a todos que o atacam, inclusive à Economist, uma revista liberal britânica de centro-direita”) – Zizek, uma dúzia d’anos atrás.

Assim como não consigo ver este governo chegando à sua morte natural ao final de 2022, não consigo construir uma história consistente de como ele acaba antes. Consigo ver esta fraude que é Guedes caindo em breve, fusível queimado, vítima do fracasso de seus expirados dogmas. Não consigo ver quem o substituirá. Já Jair…

Aliás, breve parênteses: mais um dogma está sendo derrubado: as taxas baixam e o investimento não vem. Será que o investimento tem a ver com uma coisa chamada “demanda”? Arthur, será que agora largamos a discussão de perfumarias como TLP e partimos para uma discussão dos limites autoimpostos ao Estado brasileiro? Da letra miúda e da mesquinhez que nos impede de operar com o Estado, para o Estado, e não apenas fatiando o Estado em assets a serem consumidos pelo mercado financeiro?

Mas volto a Jair. Ao governo de Jair. Ao longo trecho de Zizek com que abri o artigo. Se ao lado dos reis de outrora havia espaço para o Bobo, e se este cumpria o seu papel de crítico em meio à corte, na forma espetacular do poder contemporâneo, onde tudo é te(r)atralizado, o próprio poder nominal parece assumir o papel vulgar, o papel do real enquanto cotidiano banal e despossuído de ritual e decoro, o papel de um personagem de reality show, fragmento raso de humanidade presa em clichês feitos para nos fazer cães salivantes. Se ainda põe leite condensado nos cafés da manhã durante a campanha ou se ao álcool misturo romance com safadeza no voyeurismo escandalizado do BBB, estamos no mesmo truque narrativo da reality, de um espetáculo que discutimos como se ficção não fosse, como se após o buraco da fechadura algum ato estivesse fora das possibilidades do spin de um script. Boris, Donald, Jair – assim como o ancestral Sílvio – são as variantes a dar patadas dessa política endemol.

Atente-se: Jair não governa. Ele dá sinais claros de que não é capaz de dirigir um Uber sequer – quanto mais esta birosca à beira do Atlântico Sul. Jair (e sua prole) cumpre com notável brilho seu papel de animador do palácio, criando uma saturação de declarações insanas, polarizadoras, um palco permanente cujo objetivo me parece ser explorar o tipo de ressentimento populista-reaça que guia as vítimas da meritocracia/neoliberalismo, esta pequena, bem pequena burguesia. Nós, burocracia weberiana desta mui excelente Caixa Preta achamos sem sentido; o eleitorado que lhe dá suporte nos acha um bando de pessoas metidas, arrogantes, e com um salário muito além do que ele acharia no tal do mercado. Eles são mais, e o Estado concursado vai gradualmente sendo destruído sob os aplausos de quem acha que irá tomar o lugar dele.

Quem é a base tecnocrática que governa para Jair? Mais do que o Posto Ipiranga com a sua entourage de anões do mercado e fantasminhas camaradas, mais do que olavistas e pastores brigando sobre quem irá falar em línguas, Jair está cercado por um núcleo militar. Com a saída de Onyx, os postos ministeriais que secretariam o governo – a cabine de comando deste novo Boeing – estão todos em mãos militares. Há quem diga que a própria candidatura de Jair é um projeto militar, o reconhecimento por parte de um núcleo em torno do general Villas Boas de que a situação do país era de decadência moral e ideológica completa, e de que Jair, com sua grande popularidade seria o nome ideal para conduzir a face pública de uma grande operação de tomada do poder pela via eleitoral. Conspiração ou não, essa teoria se verdadeira traz um problema, que, espero, seja imprevisto.

Durante quase três décadas Jair foi o porta-voz das forças permanentes de segurança pública deste país. Não só militares, mas um contingente mais numeroso, com pleno controle do território. Policiais militares, bombeiros, categorias que não têm direito a greve, que estão sujeitas a punições disciplinares muito mais intensas e arbitrárias que o restante dos servidores públicos, tiveram em Bolsonaro um aliado, um irmão, alguém para defendê-los. E a eles Jair é fiel, como se viu no recente motim acontecido no Ceará. Ou na defesa daqueles que, membros que um dia foram do aparato de segurança, deixaram-se seduzir pela vida do crime. Jair (e seus filhos) os veem ainda como portadores de um sacramento da segurança pública, heroicos caveiras para todo o sempre.

A questão é: essa liderança sobre as forças de segurança do que deveria ser a pessoa que anima o circo enquanto rareia o pão, ela fazia parte da equação? O Exército está de boa com o que aconteceu no Ceará? O Exército não sabia da proximidade de pessoas que deixaram-se corromper em seus votos de manter a ordem pública e passaram, por exemplo, a proteger contraventores, com um candidato a presidente que era vigorosamente apoiado dentro da própria instituição?

Esse o nó górdio da questão de como se poderia resolver este pequeno acidente histórico chamado Jair. Quem o tira? Quem comanda o cabo e o soldado que o irão conduzir para fora do Planalto? Um nó górdio se resolve com uma espada – mas esta terá condição de enfrentar uma sublevação das PMs? Terá disposição de pagar o preço de seguir Mourão, o Itamar militar?

O homem é o lobo dos homi.

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