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Mimimitos de uma Meritocracia (Quase) à Beira Mar

Paulo Moreira Franco – Economista do BNDES

“There is no such thing as society. There is living tapestry of men and women and people and the beauty of that tapestry and the quality of our lives will depend upon how much each of us is prepared to take responsibility for ourselves and each of us prepared to turn round and help by our own efforts those who are unfortunate.”
(Margareth Thatcher)

Vínculo 1223 – Querida, Quando você diz que esta instituição está repleta de um quadro de funcionários desmotivados, mimados e arrogantes, você tem TODA a razão! E quando você diz que não era assim lá atrás… sim, não era assim lá atrás.

O BNDES de quando entrei, Collor recém-saído, era uma instituição cujo funcionário modal fora um dia um adestrando. O que era um adestrando? Na sua maioria um economista/engenheiro/administrador/advogado oriundo de uma das melhores universidades cariocas e/ou de famílias de classe média da Zona Sul. Mais “e” do que “ou”, diga-se de passagem. Entraram como estagiários, fizeram uma provinha para trainee, viraram funcionários de carreira. Talvez circule ainda por aí algum: o sopão que durou até 2012 aposentou os remanescentes, levando a um total rearranjo demográfico deste Banco.

Vejamos então: estamos falando de pessoas que foram universitários nos anos 70, que não tiveram formação neoliberal, sendo que um grupo significativo, mais no sentido de destaque na ocupação de postos na instituição do que propriamente numérico, era de militantes/simpatizantes do clandestino Partidão (PCB). Era presidente Marcos Vianna, aconteciam coisas como Marcelo Cerqueira – vice de Serra na UNE – sendo contratado sem concurso para uma das empresas que viraria a BNDESPAR (pela qual ele se aposentou, diga-se de passagem) uns três anos antes de virar deputado federal. Quando a porta dos adestrandos se fechou, alguns tardios que não entraram por concurso entraram por outras janelas: Prêmio, BNDESPAR.

Eram: pessoas jovens, de uma mesma classe, de um mesmo meio social, de uma mesma região de uma metrópole, compartilhando conjunto ideológico comum no qual o papel de uma instituição que puxava o investimento da economia nada tinha de discrepante com o que eles tinham aprendido. Época do Castro e Lessa. Não era só a instituição em si que dava a identidade, mas a própria sociedade. Reis Velloso, o ministro do Planejamento de boa parte desse período, é, até hoje, uma das figuras mais respeitadas por esta instituição.

Ao longo dos anos 90 muitos souberam bater continência para a intervenção neoliberal e fizeram algumas coisas bacanas, já que, para a maioria dos que entraram aqui à época com menos de 21 anos, isto era realmente a Casa, o lugar onde sempre trabalharam, casaram, separaram, a única realidade que conheciam.

Pulemos para o mundo do qual faço parte: os últimos PUCs, os PECs. Gradualmente as pessoas provenientes das melhores universidades passaram a ser mais diversas. Negros eram virtualmente inexistentes, mulheres uma raridade na minha geração de engenharia no raiar dos 80. Mesmo com uma presença forte dessas mais importantes universidades cariocas no concurso, mais engenheiras passaram a existir (e a passar no concurso do Banco). Mais gente de fora do estado passou a fazer o concurso e a passar no concurso. Mais pessoas com história de trabalho prévia passam a entrar.

Isto quer dizer que aquele tipo de sociabilidade que decorreu de processos relacionais prévios (ter estudado junto com o irmão ou ser amigo de outro funcionário), de pessoas serem da mesma classe social, hoje encontra-se reduzido.

Os concursos subsequentes adicionaram desafios além de trazer diversidade para o Banco. Os concursos trouxeram pessoas que são, em geral, tecnicamente muito boas. E não só agora: na sua trajetória escolar, no vestibular, mesmo nas turmas onde estudaram na universidade. Isto faz com que este conjunto de pessoas seja particularmente arrogante, pois, na sua experiência de vida, em geral estiveram à frente. O concursado do BNDES é um conjunto desviante da massa de profissionais de nível superior, ao menos na capacidade de manter o sangue-frio e responder corretamente a um monte de perguntas. Isso tem uma correlação profunda com a inteligência, diga-se de passagem.

Dos noventa para cá não tem mais a versão contemporânea daqueles caras do Partidão. A ideologia neoliberal, na qual boa parte dos economistas que cá vieram parar foi educada, resulta numa dissonância absoluta desses funcionários com aquela instituição concebida pelo personal-comunista de Vargas, Ignácio Rangel. Esta não é qualquer catedral varguista. As outras profissões foram educadas em versões ainda mais descafeinadas do papel do setor público. Há uma contradição entre o que se faz aqui (e o que é pra se fazer aqui) e o discurso ideológico que se pratica lá fora. O discurso primário e tosco da “unanimidade” dos autorizados pelas redações a falar na TV a cabo e escrever em jornais, o discurso dos amigos no facebook que se informam superficialmente sobre o Banco.

A esse problema de dissonância cognitiva se associa outro: silos. Que cá por vezes chamamos de feudos. Gradualmente se tornando uma praga sobre a instituição. O que levou a isso? Bem, este é o meu algoritmo, Fábio que conte o seu:

a) No passado recente houve necessidade de acomodar pessoas que colaborassem. Como se resolver o problema? Criando-se funções. Houve necessidade concreta dessas funções na estrutura organizacional?

b) Havia um “estoque de pessoas” PUCs que, “incorporadas” e sem perspectivas de ascenderem na hierarquia, em meados dos anos 2000 cederam cargos aos funcionários que estavam entrando. A possibilidade de ascensão gerencial serviu como barganha por funcionários “escolhidos” para a sucessão.

c) Obviamente, depois de um tempo a organização estava uma bagunça, tal a zona que as pessoas passaram a ver como natural e intocável. Qualquer tentativa de racionalização ou troca substancial de comando foi rejeitada.

d) Aí vem, em seguida, o problema da longa gestão de Coutinho. No esforço de ter controle sobre instituição, o Banco passou a ser fragmentado mais ainda, com a criação de instrumentos colegiados cujo papel basicamente era de constranger as decisões da Diretoria. As áreas-meio passaram a criar normas cada vez mais excessivas, cada vez mais contraditórias. Levou-se à proliferação dos projetos corporativos, de tentativas de formalização de coisas que deveriam florescer numa instituição saudável, ao contrário de serem enquadradas por cronogramas, metas e powerpoints. “Mudanças” nas quais a organização não é alterada, onde raras funções se criam, nenhuma se destrói e, na medida do possível, medidas burocráticas permitiram aos “alinhados” empatar a vida dos diretores do PT.

e) A gestão Coutinho trouxe outro problema significativo: a ideia de que os executivos não podem ser removidos de suas funções, rebaixados. A ideia de se fazerem coisas como rodízio de superintendentes, como artifício para perpetuação no poder. A função tornou-se título de nobreza que não pode ser revogado sem grande constrangimento para o Dharma da instituição. O que não era assim. Certamente o fim da incorporação tem influência relevante nisso. Mas esse tipo de coisa gera uma cultura de “whatever” de que os atos de mediocridade não têm consequências.

f) Só que tem um problema nessa história: o conjunto dos funcionários sem função passou no mesmo concurso, tem a mesma qualidade técnica. Pior: os últimos que entraram são provavelmente aqueles mais “meritosos”, que passaram em concursos mais competitivos. E chegando cá eles encontram pessoas que a fortuna, para usar de Maquiavel, colocou lá. Porque virtù técnica companheira, o benedense modal tem e muita. Para a maioria das pessoas essa estrutura estática, congelada, acaba dando um sentimento pesado de injustiça. O ocupante de função, no entanto, nutre a ilusão de que a sorte pouco contribuiu para ele estar lá, que seu esforço técnico levou a isso. Essa é uma ilusão mapeada por vários campos da ciência do homem, o confortável engodo da meritocracia.

Desse processo decorreu uma instituição onde, nos últimos anos, qualquer alinhamento ideológico ao governo – que já era difícil pela ideologia neoliberal – fosse restrito, desestimulado. Onde um número significativo de pessoas se veem injustiçadas, pois todos se julgam muito melhores que a média – e de fato o são fora destas vidraças, e de fato têm razão de se sentir injustiçados. Pois o trabalho aqui torna-se crescentemente uma encenação desagradável, onde é negada a criatividade a um conjunto “brilhante” de pessoas.

O que fazer? Como transformar esse conjunto de assholes num grupo saudável de seres humanos, de pessoas motivadas a realizar não só o extraordinário, mas o ordinário, o necessário?

Assumindo o papel de Red Team – e isto falta a esta instituição, Red Teams, proponho:

a) A função tem que perder relevância na estrutura salarial. É simples, resolve inclusive parte dos problemas associados à FAPES. Todos os funcionários de nível superior passam a ter a função de coordenador, todos de nível técnico a de secretário de superintendente. Com isso, discussões como GEP passam a ser irrelevantes. Isso pode ser feito, por exemplo, a partir de dois anos, de forma ao salário não aparecer publicamente como tão atrativo. Mas isso reduz a distância sem afetar a FAPES, sem mudar o plano de cargos e salários e sem um custo tão alto assim. A disputa por funções passa a ocorrer não mais porque isso tem um significado financeiro exagerado sobre o salário de quem está cá há pouco tempo.

b) A estrutura organizacional tem que fazer sentido, tem que ser reconstruída gradual e permanentemente, e não estar sujeita a entraves burocráticos, de forma a atender à necessidade de poder/relevância de áreas-meio. Isso é prerrogativa que deve ser devolvida plenamente à Diretoria como o colegiado maior que é. E exercida como tal. A estrutura precisa ser revitalizada, viva.

c) Qualquer ideia de se buscar um desempenho passível de medição, burocraticamente definido, pessoalmente atribuível, deve ser banida. Isso leva a comportamentos não cooperativos, a um tipo de instituição que é incapaz de atuar em conjunto, de se mover e defender solidariamente. Cabeças devem rolar regularmente, sem razão explicita mas que todos sabem. Os atos de mediocridade são visíveis, mas não precisam ser medidos (pois isso leva à manipulação) ou mencionados (pois cria conflito).

d) Uma vez que a questão de funções esteja resolvida, os processos de discussão devem ser estimulados no Banco, de forma a gradualmente se construir alguns consensos. Não consensos únicos, mas com diferentes visões capazes de traduzir as demandas de cada momento – e de atender a qualquer governo com disposição e respeito.

e) Isso é trabalho para alguns anos. Há que se ter paciência.

Um abraço,

Seu amigo Paulo

Associação dos
Funcionários do BNDES

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