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Notas esparsas sobre conjuntura e estrutura pós-coronavírus

Paulo Faveret – Economista do BNDES

Vínculo 1388 – Preâmbulo. O amigo Washington me convidou a escrever um artigo sobre conjuntura e estrutura para o VÍNCULO. Aceitei de imediato. Venho pensando alguns tostões e tenho vencida dívida com ele. Em várias ocasiões sugeri artigos que jamais escrevi – a hora é de pagar. Tinha dois dias. Parecia fácil. Não foi…

O pequeno Judas que trago em mim trabalhou com afinco e escrevo no último dia, com ideias embaralhadas. Embora lá fora seja o momento de contrair dívidas que não serão pagas, sinto que é hora de honrar minha palavra, mesmo que à custa de jogar ideias ao vento.

O “livre pensar é só pensar”, do genial Millôr Fernandes, virou aqui o “perguntar não ofende”, bordão do saudoso “Planeta dos Homens”, criado pelos também geniais Max Nunes e Haroldo Barbosa, em 1976. Peço generosidade aos três leitores. Há muitas perguntas e poucas respostas nessas notas pessoais e desorganizadas sobre o contexto e o sujeito, que é cada dia mais objeto (se é que algum dia não foi).

Mudança e continuidade. Há um raro consenso entre analistas e palpiteiros – a mudança chegou parar ficar. Interpretações oscilam entre mudanças de qualidade e de ritmo apenas. Domenico de Masi, como muitos, diz que o “coronavírus anuncia revolução no modo de vida que conhecemos”. Alguns creem inclusive em nova era de solidariedade (já houve uma?), de padrões de consumo menos conspícuos e de maior atenção à sustentabilidade.

O católico que habita em mim vibra com as palavras do Papa Francisco durante a Páscoa, doces por fora, mas duras por dentro, sobre como é impossível controlar a vida e o significado só encontrável na convivência fraterna e com Deus. O economista estraga prazeres que remanesce em minha razão é menos otimista quanto ao grau de aprendizagem da lição universal que o vírus oferece à humanidade.

Realista, Richard Haass, na The Foreign Affairs, afirma que “COVID-19 não vai tanto mudar a direção básica da história mundial quanto acelerá-la. (…) reforçando as características da geopolítica hoje”. Pensa que as mudanças que podem se seguir à crise serão mais parecidas com as do pós Primeira Guerra Mundial do que com as do pós II GM. Prosseguirá o declínio do envolvimento americano nas questões internacionais e crescerá a convulsão internacional. 

Henry Kissinger alerta que a pandemia do coronavírus vai alterar para sempre a Ordem Mundial. Preocupado com a posição dos EUA no cenário das nações, evoca o Plano Marshall e o Projeto Manhattan para instar os EUA a: liderarem a resiliência global à doença infecciosa; esforçarem-se para curar as feridas da economia mundial; e salvaguardar os princípios da ordem mundial liberal. Tudo indica que Trump não está interessado em nenhuma das três linhas de ação sugeridas e que, portanto, Haass pode estar mais perto da verdade em gestação. 

José Luis Fiori, arguto e radical analista político, de quem fui monitor, professor assistente e pesquisador júnior na década de 1980, diz que o “prognóstico é ruim e vai piorar”, em entrevista ao Jornal do Brasil. No Brasil, as tensões sociais se acumularão ao ponto da explosão, sem solução à vista. No plano global, “essa pandemia não produzirá nenhuma grande inflexão geopolítica dentro do sistema mundial. O que ela fará é acelerar a velocidade das transformações que já estavam em curso e que seguirão se aprofundando”.

Talvez então David Li tenha a chave: “Mas para onde estamos indo? Qual o destino? O destino está relacionado com a segunda palavra-chave: retomada. O destino é a retomada da grande civilização de 1.500 anos atrás, a Dinastia Tang. Retomada não significa vingança contra o mundo ocidental ou reprodução do sucesso americano no domínio absoluto do mundo. Ao contrário, significa o renascimento de uma civilização pacífica, autoconfiante e aberta, como a Dinastia Tang. Esse é o destino de tal mudança, que ainda está no meio do processo”. Para os chineses, ao menos para suas elites, a hegemonia no século XXI corresponde apenas à recuperação da situação vigente até o final do século XV, quando os portugueses chegaram à Ásia. Mudanças que recuperam continuidades?

Filosofia numa hora dessas. É confuso mesmo. Os grandes historiadores e filósofos se debruçaram sobre a questão e não encontraram respostas simples, tão em voga aqui e alhures. Heráclito, por exemplo, diz: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos (fragmento 49)”; “Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio (fragmento 50)”. Portanto, para ele não há distinção entre mudança e continuidade, pois tudo é mudança, inclusive para assegurar a continuidade. 

Heráclito, a propósito, tem um fragmento importante para quem enfiou o pé na jaca da ambição: “Mais do que o incêndio é necessário apagar a Hýbris (fragmento 110)”. Guardemos para outra ocasião o tema do descomedimento e do orgulho exagerado, fontes de estragos para tantos – próximos e distantes.

O Antigo Regime e a Revolução. Humildemente, fico com o nobre Alexis de Tocqueville.  Para ele, “a Revolução (Francesa) não foi de maneira alguma um acontecimento fortuito. Realmente pegou o mundo de improviso embora nada mais fosse que o complemento do trabalho mais longo e do término repentino e violento de uma obra à qual dez gerações tinham trabalhado”. (página 63). Como explica J-P Mayer na introdução ao clássico O Antigo Regime e a Revolução, “o passado jamais morre por completo para o homem. O homem pode chegar a esquecê-lo, mas sempre o conserva em si, pois, tal qual é cada época, é o produto e o resumo de todas as épocas anteriores. Penetrando em sua alma, pode reencontrar e distinguir estas diferentes épocas conforme o que cada uma nela deixou”. 

Se o brilhante escritor francês estiver certo, a discussão sobre “revolução nos costumes” ou “nova era na economia” é estéril, embora possa ser útil para posts no Facebook e lives no Instagram. Quem gosta de lacrar nas redes sociais usará esse tipo de abordagem. Os mais contidos enfatizarão que várias tendências já estavam em curso há tempos e que algumas delas serão aceleradas, mas não todas. Em meio ao nevoeiro, há muitas apostas e várias incertezas. Comento algumas a seguir.

Repensando cadeias de valor. Os pensadores cepalinos não eram ideólogos sem base científica. Nas décadas de 1940 a 1960, estudaram muito as tendências do capitalismo e dos mercados mundiais após a crise de 1929 para formular as teses de industrialização por substituição de importações e os papeis correspondentes dos estados nacionais na América Latina (davam atenção às especificidades locais). Não eram diletantes, nem meros militantes. Os cepalinos eram conselheiros do Rei e atores políticos, como todo economista é desde Adam Smith, que escreveu seu livro mais famoso exatamente para aconselhar o soberano sobre a melhor maneira de enriquecer a si e a seus súditos.

O avanço da China e do sudeste asiático na produção industrial já vinha causando imensas preocupações econômicas e sociais em países desenvolvidos. A Alemanha, por exemplo, tem debatido abertamente a conveniência de apoiar suas empresas contra a concorrência chinesa. Ao contrário dos períodos das hegemonias britânica (século XIX) e dos EUA (século XX), o século sinocêntrico assiste a uma desindustrialização generalizada do hemisfério ocidental em favor da Ásia. Países desenvolvidos reagem a isso com medidas de proteção e estímulo – “Buy America” é apenas um dos slogans que expressam tal preocupação com produtores e empregos locais.

China e Alemanha jamais descuidaram das lições de Prebish e seus colegas: as estruturas produtivas são relevantes e têm relação direta e forte com o desenvolvimento. A crise do coronavírus adiciona um elemento novo e inescapável na forma do desabastecimento de remédios, produtos e equipamentos médico-hospitalares. Já não há como confiar em suprimento externo no contexto de crise aguda e generalizada na saúde.

O complexo médico-industrial pode ser o primeiro grande experimento mundial de rebalanceamento do grau de extroversão das cadeias de valor. Assim como na saída da II GM nenhum país apostou integralmente no suprimento externo de insumos essenciais à industrialização, no pós-coronavírus algo semelhante acontecerá. Muito provavelmente, a esse setor se seguirão políticas de corte cepalino em quase todos os países. Como será o “retorno de Prebish”?

Inovação Destruidora. Luc Ferry  sugeriu ser necessário “completar e generalizar a noção schumpeteriana de ‘destruição criadora’ para bem capturar-lhe o alcance desestabilizante, até mesmo negativo, e compreender por aí mesmo que as resistências à mudança são de natureza infinitamente mais profunda e mais complexa do que se pensa habitualmente” (A Inovação Destruidora, p. 35). Por sobre os destroços da “Destruição Destruidora” da pandemia avançarão celeremente as tropas de tecnologias nem tão novas que sofriam resistências dos interesses e comportamentos estabelecidos? A rapidez com que certas práticas e sistemas de TI têm sido adotados durante o confinamento – o Banco conseguiu implantar assinatura eletrônica! – sugere que a resposta é positiva, ainda que as consequências sobre emprego, renda e modo de trabalho sejam incertas.

Bônus de guerra ou novo Plano Collor. A emissão de “bônus de guerra” está na esquina? A nova rodada de estatização da dívida privada aqui e em todo lugar promoverá crescimento acelerado de uma dívida pública já elevada nos países desenvolvidos e também abaixo do Equador. Os fiscalistas acham que estamos contratando futuros aumentos de tributação. Não discordo, mas penso que também cresce rapidamente a probabilidade de uso futuro de esquemas aberta ou veladamente compulsórios de captação, pois o mercado pode não se dispor ou conseguir rolar a dívida. É cada vez mais provável o cenário de alongamento, redução de custos ou mesmo corte da dívida pública nos países desenvolvidos? Alguns analistas financeiros internacionais falam isso há alguns anos. A crise do coronavírus pode ser o detonador? Aguardemos, com Stuhlberger, os próximos desdobramentos do tenso balé entre os estados nacionais, suas finanças e o capital financeiro internacional (que reside mais em alguns lugares do que em outros, a bem da verdade).

Lembremos que a China assiste a tudo isso muito capitalizada e sem distinguir com clareza o que sejam recursos privados ou estatais, posto que essa fronteira é arbitrária e tipicamente ocidental. 

Eficiência x robustez. Cito ipisis literis comentário de uma brilhante colega: “Essa semana em um dos webinars do CEBRI sobre China depois do coronavírus, o Arthur Kroeber, da Gavekal Consultoria, fez uma reflexão interessante sobre o neoliberalismo em cheque após a pandemia. Disse que por enquanto respostas eficientes têm vindo de realidades em que o sistema não cumpre com os requisitos de eficiência (lean) de mercado, mas onde há, sim, redundâncias que ajudam a amortecer impactos agudos. Ele também reconhece que sistemas mais centralizados (menos democráticos) ou em que o Estado exerce sua liderança levam vantagem, pois o desafio da coordenação não é algo a se superar e esse tem se demonstrado um desafio e tanto para as grandes democracias do Ocidente. Por fim, ele dizia não se surpreender que a sensação de vulnerabilidade individual diante de eventos de tamanha severidade aniquilasse o ’laissez-faire’, assim como já se diz que os próprios questionamentos à globalização recrudesceriam muito… Achei interessante”.

Antes mesmo da crise, em 2018, Michael Spence, Nobel de Economia, havia dito: “não se sabe qual será a nova ordem econômica”. Aquela criada depois da II GM está se desmanchando e a nova estrutura poderá ser “balcanizada”, com menos liberdade para fluxo de bens, serviços, pessoas e outros fatores de produção.

Sim. É esse o nível da reflexão que rola em vários lugares mundo afora. Não o fim do capitalismo, mas do liberalismo à outrance, de uma globalização até naive, simplória, mesmo. O que temos a dizer do Brasil nesse novo cenário?

Coronavírus e Estado de Bem-Estar Social. Há 27 anos publiquei artigo sobre “As V-2 Brasileiras”. Falava sobre a Ação da Cidadania do Betinho. Procurava contextualizar os nobres esforços realizados na época para a erradicação da fome no país. A iniciativa se inscrevia numa longa luta pela redução das desigualdades sociais, cujas raízes mais imediatas então podiam ser encontradas na Constituição Cidadã (do meu ídolo Ulysses Guimarães) e, apesar dos pesares, no “Tudo pelo Social”, de Sarney. Após a década perdida (1981-89), que se seguiu a um longo período de crescimento acelerado, porém desigual (1950 a 1980), a tolerância com a desigualdade parecia diminuir rapidamente e Betinho personalizou e liderou um movimento intenso e focado. 

Essa trajetória iria desaguar em evolução quase contínua das políticas de saúde, educação e assistência social desde os governos FHC até Dilma. Apesar das variações de ênfase e forma, parecíamos ter entrado em amplo consenso pró-redução da desigualdade secular, cujas raízes podem ser traçadas desde a escravidão e outros macroprocessos sociopolíticos brasileiros. No entanto, nos últimos dois anos esse leito da história parece ter sido esvaziado (não entrarei nas razões para tanto aqui). 

Em 2020, a epidemia de coronavírus revigora sentimento de unidade entre os brasileiros. Ninguém está a salvo da contaminação e o risco de morrer é função da idade mais que tudo, independente de classe social e local de moradia. Não obstante, diversas reportagens chamam atenção para o risco de espalhamento mais rápido e intenso da doença em virtude das péssimas condições de nossas cidades. A questão da desigualdade volta à primeira página de maneira espontânea e vigorosa apesar da timidez das políticas públicas. 

Minha pergunta é muito simples: o coronavírus funcionará para o Brasil na década de 2020 como as V-2 funcionaram para a Inglaterra após a II Guerra Mundial? Haverá uma reconfiguração dos sistemas de proteção social em favor de abordagens mais coletivistas e menos corporativas ou segmentadas? O setor público assumirá novo protagonismo e em que formato? Quais serão os padrões de articulação entre os três setores: estatal, privado e ONGs? Como o local por excelência da vida em sociedade – a cidade – será tratada daqui para frente? 

Creio que deveríamos dedicar mais tempo a pensar sistemas socioeconômicos; e não apenas processos e políticas isoladas. País tem trabalhado com visões muito fragmentadas dos principais problemas complexos. Talvez seja hora de um esforço mais ambicioso de abordagem sistemática e abrangente com inclusão de todas as dimensões relevantes da vida nacional, não apenas a econômica, que tem dominado as demais. Nenhum país do mundo erradicou pobreza com políticas sociais compensatórias nem focalizadas. Elas são úteis em algumas situações, mas sem tratar o modelo de crescimento não resolverão questões estruturais.

Filantropia e negócios de impacto social. A noção de “negócios de impacto social” deveria ser repensada. Ela pode não estar à altura dos desafios de gestão da complexidade quando se trata de redução das desigualdades estruturais. Não sou contra, notem bem. Apenas tenho dificuldade de aceitar a ideia de que o somatório dessas iniciativas atingirá objetivos abrangentes em termos de cidadania. Isso não aconteceu em nenhum país. É uma questão histórica. Os que lograram diminuir desigualdade se basearam em políticas públicas abrangentes, em lutas políticas intensas, em respostas coerentes das elites e em elementos da cultura coletiva (que mudaram ao longo do tempo, diga-se de passagem). Além disso, do que já pude ver na ONG que apoio há mais de 10 anos e que tem grande capacidade gerencial, o arcabouço regulatório e de avaliação é muito pesado, talvez desproporcionalmente pesado para a imensa maioria das entidades beneficentes.

Políticas horizontais e verticais. Um dos traços mais curiosos da reação governamental à crise econômica associada à pandemia é uma preferência por políticas localizadas, desenhadas setor a setor. Parece ser mais uma reação às pressões dos interessados do que uma estratégia, pois a teoria liberal prefere soluções não discriminatórias. A explicação talvez resida na resistência advinda do descompasso entre a forma vigente de pensar e a extensão da crise, que praticamente só produziu derrotados, quase nenhum vencedor. Os novos “campeões nacionais” serão tão somente os sobreviventes? Não conseguimos ser mais ambiciosos?

Apelos a um ex-maldito. Por fim, sem ser uma conclusão, impossível não registrar a volta da história e suas ironias. Vivi para ver colunistas econômicos de credenciais liberais irrefutáveis criticarem o BNDES por sua lentidão e timidez. Divertido. O pragmatismo das políticas pós-2008 foi estigmatizado como de “esquerda” por economistas e colunistas iletrados. Agora vai voltar pelas mãos dos agentes de mercado. Não surpreende a guinada que tantos defensores da pauta minimalista têm feito. Precisam manter o controle da agenda midiática. Aguardemos os próximos capítulos.

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