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Abstração

Paulo Moreira Franco – Economista, aposentado do BNDES

A double is haunting the world—the double of abstraction, the virtual reality of information, programming or poetry, math or music, curves or colorings upon which the fortunes of states and armies, companies and communities now depend. (McKenzie Wark, A Hacker Manifesto)

Steel isn’t strong, boy, flesh is stronger!

Vínculo 1514 – Assim Thulsa Doom ensina Conan, num daqueles pequenos monólogos geniais de John Millius, 40 anos atrás. O que é o mundo material perto da vontade, do comando simbólico do Mundo? “What is steel compared to the hand that wields it?” Não é a Mão Invisível, seja na forma da mais naturalizada teologia liberal, seja na forma induzida das políticas industriais, quem comanda o aço?

A assombração vem de antes. A abstração é subjacente ao capitalismo, aos sistemas que o antecedem. A abstração controla a mão, e esta controla os elementos. Controla até mais, se abandonarmos a perspectiva materialista e acreditarmos que orações são capazes de alterar a ação da química e da física, seja no enfrentamento de uma doença, seja na água que cai do céu. Se o capitalismo como quer Zizek mata com a ideia de uma Mãe Natureza a cuja benevolência possamos pedir salvação, qual à Compadecida no Auto, ele reinventa uma outra abstração: a moeda enquanto coisa, a economia, as finanças. Todo um rigor matemático, toda uma obediência a algo que, tal como em ordens anteriores, tem a fé a comandar os homens. Nada de novo nisso, mas a gente se esquece por vezes. Num tempo de cosplays, fetichismo se torna realidade. A Oração é realidade para quem acredita, confiança embora sem certeza da ação divina. À Ciência não se permite tal luxo.

Assim como título do artigo passado saiu em sincronicidade com as oportunidades de experiências gastronômicas de nosso atual presidente, o último Missão Desenvolvimento veio bem a calhar. Embora com todos os percalços que as crises de 2008 pra cá e a pandemia possam ter causado, o neoliberalismo mantinha-se sobrevivente. Mesmo o trumpismo global parecia devidamente cauterizado, submetido a uma medicação de uso constante para mantê-lo restrito a partes extremas do corpo político.

E eis que o carro alegre começa a se mover.

E eis que o que é uma guerra acontecendo entre Rússia e Ocidente desde… 2014? Georgia 2008? Sérvia, anos 90? 1945, 1941, 1917? Criméia, século XIX? 1812?… ameaça se tornar um conflito real, uma guerra quente com armas termonucleares de cada lado.

Cassiolato reconhece parcialmente que o que se acreditava seis meses atrás não mais existe. Há problemas no modelo alemão. Mas não se esmiuça a questão. No debate anterior do Roncaglia, um Conexão Xangai com um luminar de economia do PT, tratou-se de economia e desenvolvimento como se nada de cataclísmico, tectônico estivesse acontecendo.

Muitas vezes Hélio Silveira me disse que o dólar era baseado num lastro metálico: as 100 mil toneladas de aço cunhadas na forma de um porta-aviões. Essa a verdadeira moeda americana que os economistas (como eu) não enxergavam, e não todo arcabouço simbólico da necessária potência hegemônica exercendo centralidade sobre esta economia-mundo em que vivemos.

Neste momento da história a razão está com o Hélio.

O que provavelmente põe fim ao sistema constituído por estas tão pesadas moedas. Porque não há nada como uma corrida bancária ou uma chamada de margem para fazer com que uma ordem baseada em credere seja posta em dúvida. O Ocidente, que há muito tempo vinha se excedendo na prática das excomunhões, na exclusão parcial de nações inconvenientes de seus circuitos financeiros e de comércio, se depara com alguém imune a este ato de controle do abstrato sobre o mundo material: a Rússia.

Nos oito anos que se seguiram ao golpe na Ucrânia fomentado pelos americanos, os russos desenvolveram um extremo grau de autonomia em sua economia. Nada que seja tão original assim se você viveu o Brasil dos oitenta, com exceção de um importante detalhe: a Rússia é autônoma do ponto de vista energético, coisa que o Brasil naquela época não era (muito pelo contrário, os grandes esforços comerciais foram para se obter petróleo com os países árabes sem que isso necessariamente passasse por uma relação envolvendo divisas). Mas a isso se some alguns quase monopólios em algumas commodities metálicas (paládio, platina, gases nobres), uma superioridade tecnológica em propulsores de foguetes, e alguns pontos em que a tecnologia militar russa se encontra pelo menos uma década adiante do Ocidente (hipersônicos).

Ser cortado dos circuitos financeiros quando você é um país superavitário em sua balança comercial, com uma pauta de exportação de commodities cruciais para a vida moderna, e sem dependências externas críticas, quer dizer concretamente nada. Perde-se de fato o acesso ao Paypal e ao OnlyFans, mas a ideia de que uma propriedade intelectual pirateável possa ser afirmada perante o estado russo no momento é meio que risível. Portanto, desde as produções de pura abstração como Hollywood até o controle pelas finanças, muito pouco a abstração pode interferir.

Não é o caso de você se ver privado dos elementos materiais.

Há, portanto, uma lição que me parece ser o ponto não verbalizado pelo Cassiolato: ao fim e ao cabo, a ideia de que numa situação extrema o controle sobre o aparato abstrato, seja de finanças, seja de tecnologia, será capaz de submeter quem tem o domínio dos recursos materiais (em especial energia) é uma ilusão. E neste sentido, o risco que o Ocidente se coloca hoje é um Hic Rhodus, hic saltus! em que este tenha que expor sua “superioridade” militar a confrontar as forças armadas russas. E que nesse momento o caro, barroco aparato construído neste século pelos americanos (como os F35) se mostre “trading sardines”, peças que funcionam muito bem na teoria, grandes fichas de cassino, mas impraticáveis no uso contínuo de uma guerra de fato.

Aqui cabe relembrar como começou essa história. A daquele pedaço de papel que qualquer operador da língua franca do capital entende como dinheiro seguro, fluente, universal. O dólar é o dinheiro desde que deficitárias potências aliadas precisaram comprar nos EUA a comida, o aço, motores, combustíveis, em suma, um monte de coisas que americanos produziam e que faltavam na Europa. A Primeira Guerra Mundial é quando começa o “pagamento em rublos”, isto é, quando a moeda nacional do exportador se torna necessária para a realização do negócio, a medida na qual o importador se endivida. Ali surge a hegemonia americana. Hoje o dólar se valoriza por conta da fuga para a segurança de uma Europa na beira da tragédia e de uma Ásia ainda mercantilista com uma negociação ainda complicada com a hegemonia chinesa. Mas do ponto de vista dos oligarcas globais, das pessoas que mais se beneficiam da mobilidade de capital tão apreciada pelos ideólogos originais do neoliberalismo, o pacto foi traído. Mais do que no momento em 1971 quando Nixon pôs fim à convertibilidade em ouro, o dólar de fato foi ferido de morte em março deste ano.

Resiliência é a lição geopolítica que fica. A alternativa a isso não é o caso alemão/coreano de mercantilismo industrial com dependência energética ou caso anglo-americano de controle da economia abstrata. É o caso de Taiwan. Taiwan produziu um virtual monopólio na produção de chips de ponta. Eles não controlam a produção das máquinas que fazem os chips (que são holandesas), mas uma eventual “remoção” de Taiwan implicaria numa grande crise – inclusive para as indústrias da China continental. Taiwan tem uma situação no que tange à segurança análoga a dos países árabes em 73. Não por tanto tempo assim, certamente. E certamente sem a capacidade de ganhos extraordinários que os árabes tiveram após o deslocamento dos preços em 73 e em 79.

O Brasil é um BRIC, um país continental com uma (potencial) grande autonomia na sua base material. Hora de sair da eternidade e levantar da cama.

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