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71, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico”
(Chico Buarque)

Vínculo 1548 – Pós-pandemia, pós a horda de devastação que os quatro anos de ipirangonomics trouxeram ao país, o BNDES faz sua celebração do fim do Outono, seu aniversário. Ver a graça e a gravitas voltarem a uma celebração de aniversário do Banco, ver um Mercadante maduro, que sempre foi descrito na crônica política como uma pessoa de pouca habilidade, num espaço em que uma alegria e uma simpatia natural afloram, quase dá saudades de estar no Banco. Quase! Mas reencontrar tantos amigos queridos que receberam suas medalhas de 15, 20, 25, 30 anos… isso foi bacana demais! 

Uma ligação na manhã de terça me fez desistir de estar presencialmente no evento. Assisti pelo YouTube basicamente em tempo real, revi nesta quinta. Um belo evento, uma discussão do papel do BNDES com o conjunto de pessoas que, do ponto de vista institucional, faz sentido de estarem fazendo essa discussão pública. Mercadante e Lavínia estão de parabéns, em 30 anos eu acho que foi o mais adequado evento do tipo que vi no Banco.

Mas vamos ao que importa: a crítica. Afinal, querida leitora, são as capotagens e as derrapadas que fazem a empolgação de uma corrida. Tá, uma ultrapassagem aqui ou outra, mas quantos se lembram de Senna tomando a mais notável ultrapassagem da história da Fórmula 1 sendo praticada por este herói sem nenhum caráter que é o pai Piquet? Tratemos, portanto, de acidentes.

Mercadante falou em ex-presidentes, criticou gente que acha que dá para o país não ter indústria, fez seu papel de bad cop tacando pau no Bacen, poupando Haddad de fazê-lo… nenhuma derrapada de nota.

“A Ásia é uma região insalvável para o capitalismo”, assim acreditavam nas décadas de 50-60, como bem colocou o Luchesi. E, sinceramente, eles estavam certos. Peguemos o caso da Coréia do Sul. Podemos chamar de capitalismo um arranjo onde as 10 maiores corporações de controle familiar (chaebols) foram responsáveis por 58,3% do PIB em 21? Ou que o faturamento do conjunto de 64 dessas chaebols, que empregam perto de 11% da população, equivaleram a 84% do PIB em 19? Ou peguemos o caso das corporações estatais chinesas, que fazem com que a China tenha hoje um número maior de empresas no Forbes 500 que os EUA? Ou então a selvagem concentração global na fabricação de chips que uma única firma taiwanesa produziu, uma garantia geopolítica de que qualquer intervenção militar na ilha pode causar um retrocesso de meia década ou mais em toda a indústria mundial?

Me responda, amiga: isso é capitalismo? Isso é algo que reflete algum tipo de Sociedade de Mercado? A esse lugar se chega produzindo uma sociedade mais inclusiva, com mais sociedade civil democrática, mais sustentável, mais sabe-se lá qual for a moralidade discursada no Ocidente do momento? Veja bem: esses são valores em que eu, Paulo, um cara que é de esquerda tem meio século, pessoalmente acredito. Mas entre acreditar neles e acreditar que se chega ao desenvolvimento através deles nessa altura da História vai uma distância enorme. Acreditar que esses valores não serão negados três vezes até o cantar do galo pelas mesmas estruturas corporativas que os celebram hoje, é muita inocência. Acreditar que o PC da China, ou essa variante coreana de oligarquia, vá se render aos valores do Ocidente é muita arrogância.

Há uma guerra acontecendo. Do ponto de vista militar, a OTAN está fadada à derrota. Do ponto de vista político, os países da OTAN viverão uma hecatombe interna, o retorno de uma série de fantasmas escondidos em suas classes médias destruídas. Tudo indica que voltarão a ser a periferia do mundo eurasiano como foram na primeira metade do milênio passado, quando antes da peste negra uma economia-mundo eurasiana centrada no norte da Índia integrava Ocidente (mundo islâmico) e Oriente (China e adjacências). Isso não é imediato, mas é próximo, e a produção industrial mundial já reflete esta realidade.

O que difere, fundamentalmente, da Ásia para o Brasil? Não há a centralidade de picaretas do mercado financeiro, como estes que produziram a fraude das Americanas.

No meu entendimento, Empresas e Estado veem antes da (ou em conjunto com) missão. Este é o problema central da discussão que foi travada ali. Não vai ser com o laissez-faire de definir políticas neoindustrializantes que teremos uma retomada da indústria brasileira. Só que encarar isso requer encarar esses dois caminhos extremos da Ásia: criar empresas familiares em seu topo de uma eficiência brutal, com estruturas organizacionais quase militares baseadas em pura meritocracia, com todas as patologias sociais que isso envolve; ou ter um Estado empreendedor no sentido literal do termo, aquilo que o Elias Jabbour definiu como Nova Economia do Projetamento, a reinterpretação da racionalização do caminho da economia da civilização industrial descrito por Rangel, apontando para a realidade do século XXI.

Não dá para se falar de Embraer sem se assumir as décadas que se levou afundando capital nela, em estruturas de produção de engenharia em torno dela. E isso requer Estado, e isso requer a maior excelência possível, e isso requer esquecer qualquer resultado imediato. Mas, tirando a prática de Luciano quando presidente do Banco (tenho uma longa mensagem “impublicável”, enviada para um pequeno e notável grupo de amigos, imediatamente após uma apresentação dele em 12/9/2007. Disse que ia dar encrenca – e deu. Em retrospecto, acho que Luciano estava certo, o que não quer dizer que politicamente fosse viável o que tentou fazer), a estruturação de empresas do setor produtivo com porte para vencer em escala global não é vista como uma missão do Banco.

Nesse sentido, falta uma autocrítica de que não é não termos sabido dar algum salto como a Coréia nos anos 80, mas sim o fato que nos 80 nos foi imposto um ajuste violento de contas externas que exigiu superávits de balança comercial gigantescos em toda a década (relembro que só Alemanha e Japão tinham superávits maiores que o nosso no período – e a Coréia usufrui de uns bons anos de déficit e da demanda de seu vizinho japonês). Mas isso escapa às discussões. Como por exemplo escapa a destruição, pelos dois Fernandos (com um Itamar no meio), do regime de capitalismo brasileiro: o modelo tripartite de empresas estatais (infra mais insumos básicos), empresas multinacionais (bens manufaturados) e empresas brasileiras (componentes e parcerias com as outras duas pernas). Pequeno break: maravilhosa a defesa do Arthur do segundo PND, que foi o evento que deu a complexidade perdida da economia brasileira). Nada foi posto no lugar. Os bancos assumiram hegemonia. Não foi um erro do “Brasil”: foi uma pressão internacional inevitável para um país com dependência energética nos 80, seguida de uma devastação neoliberal cujos estertores culminaram com a entrega do controle da Eletrobrás no Governo Bolsonaro. Tudo isso tem CPF, tudo isso tem CNPJ, nada disso é um “o Brasil”.

Essa discussão falta, e falta porque praticamente não há atores que não tenham recolhido uma lebre ou outra nessa história. Crescer o Estado quer dizer diminuir o poder relativo do setor privado, das instituições de sociedade civil que se julgam detentoras de um Estado que não passa pelas instituições representativas da política, como se o movimento social atual, estruturado por ONGs com financiamento privado, não fosse de mais fácil captura do que o conjunto de parlamentares. Como articular um buen vivir – vivir bien, escapando da (de)pressão humana que assola a Ásia, com a transformação tecnológica num momento em que, concretamente, o prazo de se fazer algo em relação a se atingir as metas de Paris acabou (e não vai ser a nova hegemonia eurasiana que vai sacrificar seu padrão de desenvolvimento na próxima década, nem nos conceder esmolas para não sermos estúpidos e pararmos de destruir com nosso regime de águas porque acabamos com a Amazônia)?

Não sei a resposta, e acho que ninguém ali sabia.

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