Pular para o conteúdo Vá para o rodapé

A Ordem no Hospital, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

They want to be the agents, not the victims, of history. They identify with God’s power and believe they are godlike. That is their basic madness. They are overcome by some archetype; their egos have expanded psychotically so that they cannot tell where they begin and the godhead leaves off. It is not hubris, not pride; it is inflation of the ego to its ultimate — confusion between him who worships and that which is worshiped. Man has not eaten God; God has eaten man.”

(The Man in the High Castle)

Você irá dizer, leitora, que é uma forçação de barra da minha parte. Que assim como as pessoas da direita que veem o comunismo em tudo, eu quero enxergar no neoliberalismo todas as mazelas do mundo contemporâneo. Mas nesse caso, acho que esse é um ângulo importante para o que se passa nesse momento entre eclipses, neste momento de Ocidente descendente. Porque, entre tantos motivos que podem ser postos para Israel não ter invadido Gaza até agora, o neoliberalismo é um deles – mas não é o único. E me desculpa, previamente, por fazer a mãe de todos os mansplainings. Essa é uma questão que fere as suscetibilidades de muita gente que conheço, e, assim como o presidente Lula, eu torço para que os ânimos se acalmem e a paz se faça. Portanto, aqui se lerá um pouco mais de distanciamento e menos de poética ironia do que o do costume.

Mas voltando, em que a “desregulamentação” e “entregar para o mercado”, perguntará você, faz com que a invasão não tenha acontecido? E eu te digo: mas quem diz que o neoliberalismo se reduz a isso? Há outras partes nessa Ordem, e essas outras partes fazem com que, digamos, assim como um avião da Boeing projetado neste século, essas e outras partes não se encaixem direito.

Por exemplo: Israel convocou seus reservistas conforme seus planos de mobilização de emergência, os longamente preparados planos daquele mais mitológico dos exércitos contemporâneos (na imaginação de pessoas que seguem o “Mito”, ao menos). E aí falta uniforme, falta comida. Isso é sintoma de que alguém andou racionalizando os custos. De fato, apesar de todas as tensões globais que explodiram no ano de 22, o orçamento de defesa de Israel contraiu. Há anos há uma tensão quanto à duração do serviço militar obrigatório, com o Ministério de Finanças querendo cortar custos. Uma década atrás começaram inciativas para tornar o exército mais eficiente. Regra de mão: quando você ouve as palavras “eficiência”, “enxuto”, “custo-efetivo”, “KPI” (Carlos, já tem KPI por aí?) especialmente quando junto de “modernização”, prepare-se para acidentes nunca dantes vistos. Essa regra funciona para aviões da Boeing, barragens fiscalizadas por ministérios sob grandes gestores de administração pública, funciona até para as mais mitológicas forças armadas contemporâneas.

Conversando sobre o assunto com meu amigo que realmente entende disso, ele me faz uma pergunta: quantos homens na linha de frente o exército de Israel tem de fato? Eu chuto uns 100 mil. Ele diz que lá por 2006 eu estaria certo, seriam uns 80 mil. Mas hoje são 10 mil.

Você se pergunta: 10 mil? 10 mil! Sim, uns 10 mil. Entre infantaria de fuzil em punho e tanques, uns 10 mil. Pense numa empresa como o BNDES funcionando. Quantas pessoas cuidando de atividades de backoffice para fazer o negócio funcionar são necessárias para que uma pessoa na linha de frente participe do grupo que ativamente analisa um projeto. Pense na Área Financeira, na de Crédito, nas atividades de compliance, de planejamento, no RH, relações públicas… Isso vale para forças armadas, especialmente no que tange a manutenção e logística. A quantidade de manutenção complexa requerida por uma arma sofisticada dessas que separa forças de um estado contemporâneo de um grupo de guerrilheiros, armas como tanques de mais de meia centena de toneladas e aviões de quarta ou quinta geração, é imensa. Pense em deslocar as mais de 70 toneladas de um Abrams ou de um Merkava totalmente equipados. Pense no caminhão que o carrega, nas ruas, nas pontes e viadutos que ele precisará passar. Pense em limpar cada pedrinha que possa fazer um estrago na lagarta dessa máquina tão cara. Pense em cada pedrinha que pode entrar na turbina de um avião (aquele aspirador de pó com um ótimo avião do final do século XX em cima, que são os F-16 que a OTAN um dia dará para a Ucrânia, é um bom exemplo da necessidade de ter uma pista bem limpinha).

Fazer com que crescentemente pessoas especializadas cuidem desses equipamentos é algo que fica muito claro na segunda guerra mundial. Claro que há o agravante contemporâneo de você reduzir custos subcontratando empresas civis, sem obrigações de carreira e responsabilidades que militares têm, para certas atividades de manutenção. E isso até funciona quando você, de fato, não está lutando, mas praticando o tipo de esculacho com desigualdade de meio que os americanos conduziram no Iraque e no Afeganistão. Na dúvida, você sai atirando indiscriminadamente. Na dúvida, você chama apoio aéreo e bombardeia sem oposição. É caro, é estúpido, mata-se um monte de gente desnecessariamente, mas nenhum eleitor seu vai ficar incomodado porque um amigo ou parente morreu.

Israel em terra na Cisjordânia ocupada, ou Israel pelo ar nos seus países vizinhos, é uma situação dessas de esculacho. E a prática continuada do esculacho deforma o caráter. Você se julga invencível. Você começa a negligenciar nos procedimentos. E quando você menos espera, os alemães golearam no Mineirão. Você passou a viver no medo. Você sabe que sua aura não funciona mais, mas você não desenvolveu a autocrítica que só o risco existencial de fato faz você aprender. Israel está nesse estado hoje. Ter entendido, em meados da primeira década do século, que não dá mais para se entrar por terra no Sul do Líbano sem baixas proibitivas, causadas pelo fato de que o Hizbolá desenvolveu uma “imunidade” às suas forças de terra, não levou Israel a uma revisão profunda de seu posicionamento geopolítico. O governo Trump começou involuntariamente a fazer isso por eles, mas o retorno do aparato neocon com Biden fez com que todo esse esforço fosse por terra. Aliás, há que se elogiar o bom-senso de Netanyahu de ter pulado fora, na ultima hora, do grande crime do governo Trump: o assassinato de Soleimani.

Mas o fato é que a aura de invencibilidade se foi e as pessoas estão sendo convocadas da forma mais disparatada possível. O problema é que se essas pessoas podem servir para fazer a guerra de esculacho contemporânea, rainbow drones with lesbian pilots como canta a Dog Park Dissidents, invadir um espaço urbano é algo bastante mais complicado. É necessário se ir bloco a bloco, casa a casa. As vantagens da distância e do poder de fogo são enormemente reduzidas.

Voltando ao que me lembro do que me explicou meu amigo que realmente entende disso, experiência, cansaço e atenção são fatores críticos. Acrescentar um pouco de selvageria, mas sabendo que você vai e vem diariamente, e que opera aos poucos, e que gente vai morrer, isso é fundamental para conseguir ser bem-sucedido. E você vai precisar de muita gente. E de tempo. E de munição. E você vai precisar de um exército que funcione de fato para impedir que alguém faça uma gracinha em alguma de suas fronteiras. Como a Rússia em sua Operação Militar Especial na Ucrânia, o que Israel fizer em Gaza que não for uma mera ação secundária de seu exército será um ato crítico de comprometer sua segurança, corromper de vez sua aura, sua alma. Qual seja: não dá para enfiar esses 10 mil em Gaza e deixar pura e simplesmente os reservistas tomando conta da fronteira com o Líbano e da ocupação da Cisjordânia.

Tempo e munição são coisas das quais você não dispõe mais na Ordem Neoliberal (você também não dispõe das pessoas, casa de marimbondo a qual não vou cutucar). Isso requer planejamento, inversão de recursos, Estado. Gradualmente a guerra da Ucrânia comeu parte do cobertor já curto do Ocidente que vinha da Guerra Fria. As guerras de esculacho operadas à distância não requerem o tipo de munição/equipamento para uma guerra convencional. O futuro chegou com a ilusão de que o passado terminara. “O futuro não é mais o que costumava ser”, dizia Yogi Berra.

Até que Israel compreenda que sua supremacia iria requerer níveis contínuos e crescentes de brutalidade que não são mais viáveis, e que o tipo de chantagem nuclear que ele praticou no passado deixou de ser tão efetivo assim com as revoluções tecnológicas que Rússia e China estão produzindo em armas hipersônicas, ainda leva um tempo – e uma revolução interna que varra com essas elites militares formadas no bulling, na violência inconteste.

Os Estados Unidos, por sua vez, têm contas a acertar com sua desindustrialização. A revolução em curso que foi o triunfo do neoliberalismo destruiu com as bases sociais do poder material americano. As balas estão acabando, mas as ilusões ainda se mantêm. Deve haver um hexagrama sobre isso, esse meu amigo que realmente entende certamente sabe qual é.

Associação dos
Funcionários do BNDES

Av. República do Chile, 100 – Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20031-170

E-mail: afbndes@afbndes.org.br | Telefone: 0800 232 6337

Av. República do Chile 100, subsolo 1, Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20031-917
E-mail: afbndes@afbndes.org.br
Telefone: 0800 232 6337

© 2024. Todos os direitos reservados. Desenvolvido por: AFBNDES

×