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Algo que ficou por dizer, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“É preciso amar
As pessoas como se não houvesse amanhã
Porque se você parar pra pensar
Na verdade não há”
(Manfredini)

Hoje, oito do oito, deveria estar lhe servindo um artigo poético. Hoje o Mecânico faria 90 anos, 18 a menos que uma conta que fiz quando era muito pequeno, a da idade que ele teria, nós dois andando juntos, quando tivesse eu 80 anos. Entre as muitas léguas a percorrer para além da vista e da missão de Forte Bastiani, a viagem sempre adiada por museus de automóveis em França, Itália, Alemanha… Hoje, muito longe, ambas as filhas em França: uma em viagem, Marselha; outra Paris, a princípio em temporária permanência. Adultas.

Tornaram-se adultas à distância. Ao menos tenho a vantagem do Skype (e seus sucessores) sobre Ulisses, preso que fora este ao Mediterrâneo enquanto Telêmaco crescia. À Sophia prometi escrever uma crônica de dia dos pais sobre quanto a amo, quão talentoso acho esse ser que grita, esse indivíduo do espectro e futura artista que é minha filha. Digo a ele: filha, não tenhas pressa, esquece o que não aconteceu. Esquece as experiências as quais não viveste, os passos que querias ter tido, aqueles que eram óbvios, que eram tidos por certos para as pessoas da tua idade, do teu mundo. Como Poseidon jogando o sagaz Odisseu para lá e para cá, Netuno em teu horizonte te impõe miragens, te desgoverna. Te dá poderes. Seja possuída pelas musas. Possa!

Hoje, aos amigos, digo: esqueçam as bobagens que estão escritas antes e depois. Só continua universal uma mensagem: “Pais, deixai de irritar vossos filhos, para que não se tornem desanimados.”

Mas o Mundo não para. Esqueço-me do indivíduo pai e filho que sou. Vivemos um estranho, desesperado tempo. Se o desmantelar da URSS pareceu um imprevisto momentoso, se as invasões bárbaras foram metáfora para o ataque em Nova Iorque, em nada se comparam à crise prolongada que vivemos de 2008 para cá. Esqueça sua concepção monoteísta de história: vivemos um Ragnarok, um momento em que muitos deuses perecerão, momento em que monstros vêm à tona, se tornam visíveis de uma forma que mesmo os olhos hipócritas atrás das traves não poderão negar.

“Não sei se falo sobre o evento do C20 no Banco, Kamala ou sobre Israel…”

“O que as pessoas querem realmente saber no momento é sobre Maduro”, assim me respondeu Docinho na noite de quarta da semana passada. E passei a manhã de quinta num bate e boca virtual sobre Maduro com um dos meus mais notáveis e adoráveis amigos, a ponto que perdi a hora de escrever um texto com a devida coerência, e aí chegou a hora em que sob a graça de Nossa Senhora da Boa FAPES eu tinha uma ressonância a fazer num canto da cidade, e um dente a extrair, duas horas depois, noutro.

Venezuela. Esse é um assunto que acompanho pouco. A começar, porque raras coisas que chegam aqui sobre a Venezuela são mais do que propaganda de muito baixa qualidade. Falar mal da Venezuela é default, mesmo na esquerda. Procede?

Pergunto a você, querida leitora: como se lê uma notícia? Como se toma o que (literalmente) está sendo dito por algum intérprete dos fatos, por algum meio de comunicação? Os algoritmos de busca funcionam hoje, devo acreditar neles?

Tenho meus Le Grand K, meus pesos de medição. Qualquer meio de comunicação, jornalista ou figura pública que alardeou por aqui a Lava Jato como uma grande operação contra a corrupção, que tratou das “pedaladas fiscais” como um crime grave, esse está incluído no conjunto de propagandistas ou de otários até prova em contrário. Muita gente acreditou na coragem e na honestidade da Justiça e dos procuradores paranaenses. Muita gente progressista andou abraçando Bretas. Muita gente esqueceu flagrantes violações do devido processo legal no afã de uma justiça finalmente sendo perpetrada sobre notórios vilões, como os empreiteiros e os governadores do Rio. Poucas dessas pessoas fizeram seu mea culpa sobre o papel de otário. É como se as boas intenções eximissem essas pessoas de um olhar crítico, o véu de inocência de uma criança. Poucas sofreram o devido ostracismo de serem os divulgadores de picaretagens tão gritantes.

No caso da imprensa de fora, armas de destruição de massa no Iraque e russiagate são os meus pesos mais antigos. A quem acreditou/divulgou isso sem abandonar o papel de propagandista, meu descrédito. Por isso que admiro tão profundamente o Jeffrey Sachs, que de novo esteve falando num evento do Banco. Vocês repararam que lá pelas tantas ele falou que os EUA financiaram o desenvolvimento do vírus da covid? Qual seja: não foi um evento natural, mas, na mais inocente das hipóteses, um acidente envolvendo uma pesquisa financiada pelo governo americano. Do ponto de vista da maioria das pessoas maiores e vacinadas desta (e de outras terras do Ocidente), essa versão é tida como a deslavada teoria da conspiração. Do ponto de vista das conspirações de direita, essa hipótese põe a culpa no governo errado. Só que Sachs é alguém que mergulhou no assunto, que conduziu a revisão do The Lancet sobre o vírus. Sachs é um dos pesos entre o mainstream acadêmico ocidental que uso para discutir as origens da guerra na Ucrânia (o outro peso desse tipo é o Mearsheimer).

Maduro segue firme e forte. Não creio que vá cair agora. O governo venezuelano é algo muito mais forte e enraizado do que acreditamos. A única pessoa que conheço que teve alguma relação continuada com a Venezuela (até alguns anos atrás) trocou umas mensagens comigo, perplexa com a forma como pessoas de um grupo de esquerda da qual faz parte tomavam o publicado pela imprensa como realidade. As pessoas se dão conta que o tal candidato de oposição foi, no mínimo, um bystander do processo de repressão em El Salvador na era Reagan? Que a simpática e genuína líder da oposição, impedida de ser candidata, Maria Corina Machado, pediu em 2018 que Macri e Netanyahu a ajudassem a derrubar o governo venezuelano?

O mesmo amigo insiste na dúvida de que o resultado das eleições possa ter sido outro que não a vitória de Maduro. Ele observa o número de generais que estaria na casa do milhar na Venezuela. Interessantíssima observação. Seria a Venezuela a experiência prática da proposta de poder dual do Jameson? Ou seria algo como o Egito em gestação? Ele também se mantém fiel ao wet market de Wuhan origem causa do COVID. Reflita, leitora, sobre as consequências políticas da hipótese de Sachs estar certo. Não sobre partidos, mas sobre o establishment científico.

Mas Maduro foi, semana passada, assunto menor como aparentemente menor é o golpe em Bangladesh (embora uma revolução colorida não possa ser descartada como narrativa, o que a tornaria parte de um conflito maior). Como, no fundo, a escolha do vice de Kamala também é um assunto menor. Podia ter sido menor ainda se Shapiro, governador da Pensilvânia, tivesse sido escolhido. Alerta: vocês vão ver algumas versões que ele acabou sendo preterido porque é judeu (e isso comprometeria os votos da esquerda do partido, que não apoia o genocídio). Isso é uma abobrinha confortável, um caseiro com o sigilo bancário violado: houve negligência dele num caso de sexual harassment de um subordinado e há um caso mal explicado de uma mulher que se “suicidou” com vinte facadas, do qual ele foi o procurador (e amigo da família do noivo). A lenda é que o primeiro caso foi fatal perante Kamala, alguém que também foi procuradora.

Dois assuntos são quentes neste momento: a queda das bolsas e a guerra que não começa entre Israel e Irã. Serei bastante sintético, pois esses são assuntos longos que ainda vão se desenrolar. A crise financeira que acontece hoje tem por base a valorização do Yen. Ela é, antes de mais nada, uma crise financeira com todo o tipo de garantias sendo executadas e levando a cadeias de vendas de ativos retroalimentando essa queda. Mais surpresas virão.

Quanto à guerra que não começa, não quer dizer que os impactos do risco de ela acontecer não sejam sentidos. O desgaste da prontidão, os cancelamentos de atividades, tudo isso é consequência de um belíssimo ataque iraniano que não envolve custo algum. Tariq Ali conta que Chomsky lhe disse uma vez que Chavez e Nasrallah eram os líderes políticos mais inteligentes que ele havia conhecido pessoalmente. Talvez estejamos testemunhando que ele está longe de estar errado.

Aos pais, às filhas e filhos, meu carinho, minha solidariedade. A Ulisses, cujas desventuras o pai de Percy usou para nos trazer risos e admiração, saúdo sua gloriosa memória.

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