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“Aquarius, Aquarius”, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

All Watched Over By Machines Of Loving Grace

(Richard Brautigan)
I like to think (and
the sooner the better!)
of a cybernetic meadow
where mammals and computers
live together in mutually
programming harmony
like pure water
touching clear sky.
I like to think
(right now, please!)
of a cybernetic forest
filled with pines and electronics
where deer stroll peacefully
past computers
as if they were flowers
with spinning blossoms.
I like to think
(it has to be!)
of a cybernetic ecology
where we are free of our labors
and joined back to nature,
returned to our mammal
brothers and sisters,
and all watched over
by machines of loving grace.

Retomo onde parou a vaca. Retorno às discussões de IA. Retomo, fora daqui, a um passado descrito sem escrita. Retorno a uns futuros do passado.

Não só de BRICS-PANGEIA fala o doce Hélio Pires em suas incursões no WhatsApp. “Então, o que falta para a era de AQUARIUS?”, clamava ele nesta segunda-feira. A Era de AQUARIUS: um momento profetizado que temos pela frente, um mundo em que finalmente pousamos em Utopia, tenhamos ou não pisado em Marte. Helinho, nascido nos 50, educou-se nesse otimismo, nessa visão positiva de uma transformação benévola. Nós que seguimos a eles, fomos as criaturas do cinismo. Somos, melhor dizendo. Pensar uma utopia se você vive sob a consciência do realismo capitalista parece impossível. Talvez não haja melhor alegoria para isso do que o presente eterno de Matrix, construído em cima do presente da virada do século XXI, outro período de otimismo e rebelião, como foram os sessenta. Definitivamente uma boa época para se ter vivido, para ser jovem, mas não necessariamente uma boa época para ter nascido: essa, a geração nascida sob o boom da internet/globalização, foi quem tomou as trincheiras da covid pelo meio de sua formação universitária, de sua vida profissional começando; talvez pior que a minha, a do vendaval das crises dos 80 sem ter raízes fincadas.

O futuro de quando eu era pequeno tinha Os Jetsons, tinha os carros voadores que não vieram, de que reclamava Graeber. Futuro de 2001, com um voo da Pan Am para a Lua. Futuro de Jornada nas Estrelas, onde não se sabe que tipo de economia sustenta a frota estrelar. A Enterprise “em sua missão de cinco anos, para explorar novos mundos; pesquisar novas formas de vida e novas civilizações”, seria ela um desdobramento do 62º ou 63º Plano Quinquenal chinês?

Em alguns futuros, o trabalho foi abolido, reduzido. As hierarquias, contudo…

Começo por um dos mais fofos futuros, um futuro imediato de um filme que logo fará cem anos. Em “A Nós a Liberdade”, uma bela comédia francesa de 1931, o trabalho de linha de montagem de uma fábrica de vitrolas é, ao final, totalmente substituído por automação. A propriedade da fábrica é entregue aos operários, e eles vão pescar, vão dançar… Sequer é necessário que naqueles tempos “cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia”, pois para que as mercadorias existam a intervenção humana quase não é mais necessária. E esse era o futuro que Keynes vislumbrava, 15 horas de trabalho por semana. Por que não chegamos lá?

Nos futuros distópicos (e neles incluo a “versão” de Chaplin de A Nós a Liberdade, que é o extraordinário “Tempos Modernos”, bem mais sombrio), as hierarquias do mundo persistem. O mundo hedonístico e confortável de “Admirável Mundo Novo”, que é contemporâneo a esses filmes, é construído a partir de hierarquias estabelecidas na própria produção das pessoas. O futuro mete medo, e o indivíduo, em sua pureza romântica, fracassa. No contexto de coletivismos dos anos 30 – dos fascismos e da URSS – a história é um medo palpável. Mas há uma preocupação com a própria reprodução das pessoas, que ali toma sentido fabril em relação à forma “pastoral” como elas são produzidas noutra distopia que é “A Máquina do Tempo”, de H. G. Wells (você já deve ter visto uma das versões na sessão da tarde).

Pulando três décadas à frente, num mundo que já tem computadores, Godard imagina em Alphaville uma sociedade governada por um deles. Novamente, arte – a poesia como veículo de emoções – se choca com a máquina incapaz de entender o contraditório, o abstrato (e por favor, leitora malvada, não faça uma piada dizendo que o público também não entende: Godard tem sua graça, vai).

Talvez pensar um futuro que é melhor que o mundo de hoje não seja uma boa arte do ponto de vista de manter as pessoas satisfeitas com o mundo para o qual retornam depois de consumi-la. Não, pelo menos, quando esse mundo é prospectivo, um mundo ao qual chegaremos. Se for um mundo nostálgico, vá lá. Achar que estamos na queda de algo glorioso é reconfortante, põe limites sabidos do melhor que podemos ser. Um futuro definitivamente melhor? Isso, pelo visto, incomoda. Esse raio dessas uvas, definitivamente, têm que estar verdes.

Mas voltando à Era de AQUARIUS do meu querido Helinho, qual a ambição temos desse novo tempo? O domínio da vontade, o domínio sobre a vontade, um domínio sem vontade? Ou não é a vontade a chave, mas a necessidade? O que é esse paraíso, esse lugar futuro a que se chega, o Shire ao qual se retorna finalmente?

Koijin Karatani, um velhinho marxista japonês, tem uma reformulação do entendimento de processo histórico muito interessante (este resumo de McKenzie Wark está formidável, recomendo), percebendo-o através de como as mercadorias são trocadas, e não como são produzidas. Mas o ponto que me interessa aqui é que, para Karatani, o que buscamos é o retorno do reprimido do mundo neolítico. Qual seja, o mundo da abundância dos caçadores-coletores onde não havia desigualdade, onde os nômades seguiam tranquilos e felizes trabalhando o mínimo. Onde as coisas são divididas, como nas comunidades religiosas (o sistema de troca D na terminologia dele).

Escrito no otimismo dos 60, o poema do Brautigan é talvez a melhor alegoria desse desejo de retorno a esse mundo “original” da humanidade. Ele coloca o computador como forma de fazê-lo. Indiretamente, pensaríamos: como forma de abolir o peso do trabalho repetitivo que a sociedade industrial trouxe, esse trabalho caricaturado nesses filmes dos anos 30. Mas não só desse peso trata o poema: há o peso do trabalho da classe criativa, a pressão pelo novo, sobre o desejo, aquilo que nos mantém longe da vaca.

Aquário representa o coletivo e a igualdade. Ao assumir o papel das hierarquias, o “computador” pode realizar isso. O que sobra, no entanto, do Leão?

Essa é uma pergunta que fica para um próximo episódio.

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