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Aquisição, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

I’m guided by the beauty of our weapons”
(L. Cohen)

Ambicionava tratar da Ambição neste artigo. Mas acordo, depois da agradável (e atrasada) experiência de ver a pré-estreia de Barbie na madrugada, constatando que dois contatos de prefixo 61 totalmente distintos e desconhecidos entre si mandaram a mesma notícia dos chineses zoando com a qualidade das forças armadas brasileiras. Em função disso, resolvi antecipar uma discussão que faria após um eventual evento no Banco sobre Indústria da Defesa. E há também algumas questões sobre a guerra acontecendo na Europa entre o Ocidente e a Rússia que puxam este assunto.

Todo dia aparece alguma notícia de armas que estão sendo pedidas pela Ucrânia, de armas que estarão sendo enviadas à Ucrânia. Tanques, aviões, balas para os canhões – todo dia como que um brinquedo diferente, um talher, um carro, um objeto que é colocado que se fosse um uso genericamente estabelecido, automático.

Armas não são isso. Armas fazem sentido dentro de uma doutrina de uso, de um treino de dezenas/centenas de milhares de pessoas, de uma capacidade de operá-las. Assim é para os russos, para os chineses que nos zoam neste momento. Mas e para nós, brasileiros e/ou pessoas preocupadas com desenvolvimento como eu e você, para os países ocidentais? O que são armas, o que é a indústria que as produz?

Na mesma conversa contínua de um dos prefixos 61, alguém mandou dois links de Paulo Gala tratando de duas armas aqui feitas, o sistema ASTROS e o KC-390. Ambos os textos compartilham a celebração da “importância do investimento em pesquisa, desenvolvimento e parcerias para alcançar autonomia e excelência”, do “sucesso da parceria entre governo e indústria na busca por inovação e excelência”. E, no entanto, nada mais diferente que a origem desses dois equipamentos. Enquanto o Embraer C-390 é um belo projeto desenvolvido dentro de um conjunto de necessidades da FAB, o ASTROS tem sua origem no oportunismo dos 80.

Pequena história do sucesso da indústria bélica brasileira nos gloriosos (só que não) anos 80. Tinha um país que precisava desesperadamente de petróleo. Havia uns países que tinham petróleo, mas precisavam desesperadamente de armas. Os países ocidentais eram cheios de mimimis, não queriam vender certas armas para países cujos governantes eles derrubariam décadas depois (Saddam e Kadafi). Os soviéticos tinham o péssimo hábito de fazer armas que, por princípio, serviam ao seu uso militar, que não necessariamente era o desses países. Nessa brincadeira, viramos linha auxiliar do complexo militar industrial iraquiano. Também viramos a construção civil pesada deles, sem financiamento do BNDES naquela época. Também se fizeram Brasílias de quatro portas, fomos a indústria automobilística. Um dos primeiros atos criminosos de lesa-pátria de Fernando Collor foi acabar com a Interbrás, a trader da Petrobras. Na minha opinião, este foi o maior crime de todos (até a entrega da CVRD e, recentemente, o recorde de Guedes com a Eletrobras).

Mas voltando ao Paulo Gala, há ali a síndrome da mão invisível, a noção “mandevilã” de que os vícios privados podem ser benefícios públicos. Que, na verdade, quando você está gastando dinheiro com armas, você está desenvolvendo a tecnologia do país, tecnologia que virá a ser útil para tantas coisas…

Não!

O objetivo de uma missão é a missão em si. Se você começa a pensar que a missão na verdade é pretexto para outros objetivos, a missão fracassará. Esse é um ponto crucial se formos partir para uma economia missionária: ela é papai e mamãe, objetivos claros, consequências esperáveis. Usar objetivos secundários como justificativa serve para mascarar o fato de que a missão em si, por si só, não se justifica.

Pegue o caso maior, o dos EUA, a melhor força militar da história®. Da década de 40 para cá o orçamento de defesa americano em si é um campo de batalha entre as diferentes forças. Entre as diferentes empresas com interesses envolvidos. A ponto que, depois de um tempo, você se pergunta se realmente fazem sentido certas decisões. Do ponto de vista dos parlamentares, o objetivo secundário de pork tornou-se o objetivo principal. O que faz com que a decisão irracional de se espalhar a produção de certos equipamentos pelo maior número de estados seja feita para garantir que nenhum parlamentar vá votar contra algo que possa representar a perda de empregos em seu distrito. Do ponto de vista dos burocratas (principalmente dos militares), a porta-giratória entre as pessoas que estão especificando e requisitando os equipamentos, e as empresas que irão projetá-los e fabricá-los, é algo de fundamental importância.

Por outro lado, qual o uso das forças armadas americanas de 2001 para cá, quem sabe de 1990 para cá? O esculacho. Sob o pretexto/ilusão de unipolaridade, os EUA se meteram em ações armadas pelo mundo afora nas últimas décadas (não que não fizessem isso antes). Em parte, algo que pode ser entendido na doutrina Ledeen: “Every ten years or so, the United States needs to pick up some small crappy little country and throw it against the wall, just to show the world we mean business.” Em parte, a escolha de pequenos vilões elevados à condição de personagens apocalípticos. A prática continuada do esculacho leva à perda de qualidade do esculachante: a violência pura e desigual não requer engenho e arte. Mas uma discussão mais completa da deformação doutrinária e de qualificação de recursos humanos das forças armadas americanas ficará para outro momento. O importante agora é saber que a capacidade produtiva, a capacidade de fazer equipamentos e munições em quantidade e dentro de um custo viável, foi perdida. A guerra na Ucrânia põe a nu a dissolução do poderio industrial americano, de sua capacidade de formular e cumprir missões.

No andar debaixo do Hemisfério estamos nós, um outro gigante continental da América. Aqui o buraco é outro. Qual o propósito de nossas Forças Armadas? Quais os cenários que justificam a força que temos? Quais os cenários que justificam a força que se propõe?

Um primeiro ponto para começar o entendimento é o quão inchadas são as Forças Armadas, o seu excesso de quadros. Este artigo de Eugenio Diniz é perfeito para se entender a absurda realidade desses números. Os chineses não estão errados sobre o que temos. O fato de que não foi preciso criar o programa Mais Militares, como propôs Jacqueline Muniz, para preencher vagas em branco por conta das milhares de boquinhas com DAS que os militares foram ocupar no governo atribuído a Bolsonaro, é um exemplo claro desse excesso.

Um caminho é discutir a política que teremos. Digo a que teremos porque o que temos são os desmandos do governo do ex-deputado que se vendia como ex-capitão e o caos do regime golpista que o antecedeu. Sobre a anterior e seus problemas, recomendo este artigo de Domício Proença Jr. e Marcus Lessa.

Mas o fato é que antes de qualquer discussão do Banco sobre o apoio ao setor de Defesa, o papel, tamanho e equipamento necessário para que as Forças Armadas venham desempenhar suas funções precisa ser esclarecido, discutido. Isso precisa ser feito de forma realista, sem argumentos cretinos como o submarino nuclear para defender o pré-sal. E isso precisa ser feito sem os argumentos de “inovação e excelência” tão a gosto de economistas como Paulo Gala, que nunca mergulharam na missão, de fato, do produto dessas indústrias.

Pegando um argumento do Eugênio, há necessidade uma retomada da construção de quadros civis no aparato de Estado para tratar do assunto Defesa. O BNDES faz parte desses quadros, indiretamente. Começar, no entanto, pela política de boa vizinhança financiada com os atores privados que estão nisso apenas para ganhar dinheiro me parece ser mais uma Ambição num momento em que, modestamente, deveríamos prestar mais atenção ao mundo que vem do que ao mundo que projetávamos.

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