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Assim como os cavalos… e os samurais, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

Não existe solidão mais profunda que a do samurai.
Se não fosse a de um tigre na selva…Talvez…
(Le Samouraï)

… a de um profissional em home office.

Não, não foi com Brynjolfsson, mas do meu amigo António José quando trabalhávamos ambos no Banco, que ouvi pela primeira vez o argumento dos cavalos de Leontief. Para os que não conhecem, em 1982, num número da Scientific American dedicado ao tema mecanização do trabalho, Wassily Leontief, o cara que nos deu a matriz insumo-produto, fez a interessante constatação de que um determinado conjunto de trabalhadores, que se esperaria vítimas de novas tecnologias de comunicação e transporte ao longo do século XIX, mas mesmo assim prosperou e cresceu, sofreu uma pesada redução durante a primeira metade do século XX: os cavalos e jumentos.

Nas discussões da década passada, bem como quando Leontief formulou esse problema no final dos setenta, bem como em Metropolis (que descreve a Europa no ano quando Lula concorrerá à reeleição), os pobres trabalhadores braçais são as vítimas dessa substituição. Robôs fariam o trabalho que os pobres humanos pobres fazem, tornando-os obsoletos, desnecessários. Aliás, a própria palavra robô é inventada numa peça de teatro (RUR) de um século atrás, onde essa substituição acontece (em que pese que os robôs lá são bem mais próximos dos replicantes de Blade Runner que do robô de Perdidos no Espaço).

Peter Turchin, que eu discuti aqui no VÍNCULO uns três meses atrás, enxerga um problema diferente: as elites sendo substituídas pela Inteligência Artificial. No caso, sobre um exemplo que ele mesmo usa no livro, o dos advogados. Um dos trabalhos intelectuais em que se pode antever a significativa substituição de trabalho humano por inteligência artificial está o trabalho dos advogados. Muito do que é o trabalho de pesquisa e formulação de petições básicas é passível de substituição num horizonte muito próximo (concretamente isso já acontece neste momento em que escrevo, me diz uma advogada bem próxima).

Como isso, por exemplo, impacta as perspectivas de emprego? Pegue-se as descobertas do recente estudo feito pela OAB e a FGV. Mais de metade dos advogados tem menos de 10 anos de carreira, pouco menos de cinco por cento tem uma remuneração igual ou superior à do piso da magistratura, sendo que a maioria dos advogados recebe menos que cinco salários-mínimos. Estamos falando de uma profissão em que há um claro (e pequeno) grupo de elite; e há um grande conjunto de profissionais de colarinho branco que terão carreiras limitadas, frustração em sua perspectiva de pertencer à elite. Com versões melhoradas e tropicalizadas de ChatGPT e equivalentes para direito, mais se torna claro que esses profissionais da base serão substituídos. Acho que ninguém tem dúvida quanto a isso.

Só que eu faço uma outra provocação. Como economista NM que sou, certos processos eu engajo numa perspectiva mais de economia política clássica, mais num entendimento de classes num contexto histórico do que numa perspectiva estritamente de mercados de trabalho. E ainda como economista NM, fora da posição missionária do marxismo.

Considere aqueles que montavam em cavalos no início do milênio passado. Não só eram elite, mas tinham uma função social clara. Um aristocrata medieval europeu era um guerreiro em constante preparação para o uso de violência. Era um trabalho integral, que o tornava capaz de carregar dezenas de quilos de blindagem de ferro, manejar armas de combate próximo com destreza, e ter a coragem para executar isso sem hesitação, sem dó nem piedade. Como eles, ao longo da história muitas outras classes/castas de guerreiros desenvolveram habilidades assim, habilidades onde, em determinada formação social, esses guerreiros conseguiam “proteger” populações de si mesmas e de outros como eles.

Até o momento em que lá pelo XIII começam a aparecer armas de fogo. E no início do século XV, uma rebelião religiosa na Boêmia começa a trazer novos horizontes, onde inovações vão começar a pôr em xeque a definitiva superioridade desses tão bem treinados guerreiros. Por outro lado, o custo da artilharia também vai inviabilizar o pequeno principado com sua virtual independência, a cidade livre com suas muralhas feitas para aguentar cercos. Um processo lento, secular.

A aristocracia continua existindo. Seu papel, de fato, não mais. As estruturas sociais de controle e propriedade, de ordem e hierarquia, persistem. Por algum tempo. Mas logo o absolutismo e as revoluções burguesas põem seus limites, e embora muita riqueza persista nessa forma, a base se vai, a classe se torna pouco mais que uma figuração.

No outro lado do mundo, no Japão, onde essa classe de guerreiros incorpora também as funções burocráticas do estado (quem tiver tempo e paciência veja esta adorável versão de 47 ronins de 1941), as armas de fogo entram por mãos portuguesas, para serem restringidas até praticamente o fim do xogunato.

A construção da ordem que temos hoje, onde a Professional Managerial Class exerce o controle sobre os aparatos simbólicos necessários ao funcionamento de nossa sociedade, não é distante disso. Sem essas pessoas credenciadas, tecnicamente selecionadas por mecanismos meritocráticos (quaisquer que sejam eles nos diferentes lugares), ocupando suas posições hierárquicas nas estruturas corporativas, a produção e a circulação não acontecem. A logística ocupa o lugar do que um dia foi carisma e coragem, do que um dia foi capital e iniciativa. Onde no mundo burguês do capitalismo aqueles instintos animais operavam, onde a sagacidade e a força nos mundos anteriores ao capitalismo, as ciências tomaram o lugar. A propriedade sobre o mundo corporativo hoje raramente é de um capitalista, um empreendedor tipo Musk (e quando é, e ele age como um detentor de capital dotado de vontade, isso é tido como muito inconveniente, vide Twitter). BlackRock Vanguard e State Street gerem o “capitalismo” mundial, tal como a SASAC controla a estrutura de grandes corporações estatais chinesas.

A pergunta é: quanto tempo falta para que se possa substituir essa elite de pessoas credenciadas por inteligências artificiais? Vocês, assim como os painelistas do evento do Banco, acham que inteligência artificial vai vir para tornar o trabalho mais eficiente, mantendo as ordens tal como estão? Sério? Assim como a arma de fogo fez prescindir de todo treino de uma vida de um guerreiro, IA tornará o complexo ensino que nos credencia desnecessário. Não é uma questão de que a educação como temos se tornará melhor ou pior: ela se tornará, de fato, inútil. Num horizonte não muito distante os bacanas da PMC irão “morar em Versailles”, fantasmas nominais do que foram um dia. Incorporando a terminologia de Wark, tanto o trabalho simbólico criativo, de criar o código, o novo, o trabalho da classe hacker; quanto o da classe vetorista, de formular o Código sob o qual o novo se insere, é apropriado e controlado; todos esses trabalhos da Classe Criativa do Richard Florida estão destinados a desaparecer. Não são os trabalhadores que se tornarão supérfluos em Metropolis: é o Grande Senhor, é o cientista satânico a inventar o robô e a revolta.

Todo o conjunto de painelistas ali está apostando no presente: os detentores de mandatos com suas visões técnicas limitadas e contraditórias; o burocrata do civil service tupiniquim com seu enfado de superioridade e uma ponta de desprezo pelos outros burocratas ali presentes; o brasileiro que dá aula lá fora falando de como poderíamos ser como lá, sem entender o quanto aquilo lá está se desmanchando, o quanto falta de privada na iniciativa pública; Andreas e Andrew, notáveis presenças em que não se percebe em nenhum momento que a ordem ocidental no qual se inserem tem seus dias contados nas eleições que vêm pela frente em 2024 e 2025; o senhor do Piemonte e a jovem moça que está em Campinas, ambos vendendo suas agendas, suas limitadas indulgências para mitigar os pecados de um mundo imperfeito, mundo onde essas indulgências decorrem de Andreas e Andrew em seus ashrams.

Muitos erros serão cometidos até que o futuro, inexorável, chegue.

(continua)

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