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Até que a Amortização nos Separe – 1ª parte

Por que o Banco neste início de século?

The past is a foreign country; they do things differently there.
(L. P. Hartley)

Mudaram as estações, nada mudou
Mas eu sei que alguma coisa aconteceu
Tá tudo assim, tão diferente

(Renato Russo)

Vínculo 1234 – Era uma vez uma economia onde a risk free e os custos financeiros básicos de suas operações de financiamento de longo prazo, seja das empresas ou das famílias, eram a mesma taxa: correção monetária mais 6% ao ano. Bem, isso para a Caderneta de Poupança, o PIS e o PASEP, o FGTS… e tardiamente o FAT. No caso desses fundos, a remuneração era de 3% ao ano (com valores progredindo até 6% para pessoas com mais de 11 anos numa mesma empresa no caso do FGTS). Por que 3% e 6%? 3-6-3 (“3-6-3 rule: Bankers gathered deposits at 3 percent, lent them at 6 percent, and were on the golf course by 3 o’clock in the afternoon“), o boring bank que existiu nos EUA (e por cá copiado) até a virada para a década de 80. Era assim que o Banco operava: com correção monetária e mais alguma coisa. É bem verdade que por vezes fossem feitos contratos com milagrosos descontos: alguns contratos estabeleciam correção por índices, por exemplo, como 40% ou até 20% da correção monetária.

Para os mais jovens e as pessoas cuja idade comece a corroer a memória, há que se explicar um ponto: correção monetária. Correção monetária é a cobrança (ou capitalização) de juros pós-fixados correspondentes à inflação no período. Supondo que uma parte dos juros tenha como finalidade defender o valor de compra de um montante de dinheiro aplicado, ela é uma forma de se reduzir as incertezas. Milton Friedman, nos inflacionários anos 70, era um simpatizante da correção monetária.

Cabe lembrar uma segunda coisa: naquele tempo regulações limitavam crédito e criação de dinheiro de uma forma distinta da que conhecemos hoje. Bancos centrais usavam de compulsórios, os bancos faziam empréstimos que eram carregados em carteira (e não securitizados), circuitos financeiros não eram totalmente abertos, a conversibilidade de moedas era razoavelmente limitada e controlada, e havia na ciência econômica uma série de humores e flogísticos ligados à base monetária e à velocidade da moeda que explicavam satisfatoriamente o funcionamento da economia. Algumas dessas práticas primitivas ainda são presentes cá, “sanguessugas” como o uso de depósitos compulsórios pelo BCB.

1994. Plano Real. Para a história que me interessa contar aqui, o Real diferenciava-se de todos os planos heterodoxos anteriores em dois pontos: não se sentia obrigado a ajustar a balança comercial no curto prazo (e, portanto, não era forçado a ajustar o câmbio e os mecanismos tributários/regulatórios para produzir um superávit de balança comercial expressivo) e estava disposto a usar a taxa de juros de forma radical como ferramenta de política. Com isso, ao mesmo tempo em que as taxas de juros explodiam de forma a evitar uma fuga para ativos reais e consumo, o câmbio e a balança comercial implodiam em paz, com a devida contribuição de aplicações externas que vinham buscar essa remuneração em reais. Correção monetária? Bem, correção pela inflação, Verboten! A TR, versão à época da correção monetária, passou a ser fixada não mais automaticamente pela inflação: virou de fato um instrumento de política monetária nas mãos do BACEN.

Quer dizer, Verbotenpero no mucho: uma coisa chamada IGP-M, vulgo o mais antigo dos índices de inflação, calculado pela FGV e utilizado oficialmente no passado – o IGP-DI, só que com uma base de cálculo que ao invés de expressar a inflação de um mês expressa uma inflação que dá pra ser estar disponível no fim do mês (portanto, com a coleta de dados fechada uns 10 dias antes) – fosse de uso corrente pelo mercado na época. E logo, logo papéis em IPCA também passaram a fazer parte dos títulos disponibilizados pelo governo para pessoas estacionarem seu dinheiro.

No início do Plano Real (coisa que perdurou por pelo menos mais um par de anos) a Caderneta de Poupança continuava de fato como piso no qual o mercado operava, a verdadeira risk free. Em especial para as pessoas mais aptas a converter seus recursos financeiros em inflacionário consumo. Portanto, o governo tacou os juros lá no alto para que a explosão de consumo/desabastecimento que matara com o Plano Cruzado não se repetisse (ou fosse resolvida com as novas possibilidades que o mundo de finanças globalizadas construído a partir dos 80 criara).

Boa solução de curto prazo com um pequeno problema: ela mata com qualquer investimento. Basicamente, você não pegará um papel de longo prazo com juros pré-fixados menores que aqueles que você receberá no curto prazo. Você não investirá no momento em que os juros estão estratosféricos: você espera mais um pouquinho pra investir. Isso é óbvio pra qualquer ser humano que não seja um economista (do tipo que crê piamente em modelos). Como os economistas são raros na população, não é só consumo que é reduzido, mas o investimento é refreado por este tipo de choque de juros.

Tem outro, pequeno problema: quando as taxas de juro são pós-fixadas qualquer mudança delas terá impacto sobre todo o conjunto de ativos que segue aquelas regras. Um choque de juros desse tipo, portanto, não impacta só a renovação de aplicações financeiras existentes ou criação de novas aplicações financeiras. Ela transfere riqueza dos endividados nessa taxa para os detentores de ativos vinculados a essa taxa.

Ao fim de 1994 era exatamente isso o que acontecia por cá. Havia um certo pânico com a perspectiva de as consultas começarem a rarear, que empresas viessem a ficar inadimplentes com essas dívidas. E como vimos no capítulo anterior desta saga, este Banco não tem nada a ganhar tosquiando seus clientes.

E aqui vai uma pequena explicação de como o BNDES operava. Em 1994 o Banco tinha basicamente três tipos de taxas básicas (sobre as quais se somava um spread) em sua carteira, todas envolvendo correções pós-fixadas:

• TR+6%. No caso a TR era pós-fixada, capitalizada, e os 6% (e os spreads) pagos (mensalmente na maioria dos casos). A TR era a versão de então da correção monetária que vimos no início.

• Câmbio + juros. Na época havia dois grandes conjuntos: a UMBNDES, com a correção monetária dos indexadores das diferentes moedas na carteira de captações externas (capitalizado) e os juros que incidem sobre carteira (cobrados na sua periodicidade); umas poucas operações remanescentes e operações de exportação começando a aparecer operando em outras moedas estrangeiras. Cabe lembrar que já naquela época “mercado” era uma coisa a ser empurrada goela abaixo de nossos clientes, que preferiam a correção monetária a, por exemplo, o risco cambial de algo que continha iene (a UMBNDES).

• Pasmem, havia alguns bilhões em operações em IGP-M! E elas não constaram da carteira de operações primárias (o desempenho, o desembolso) do Banco! Por quê? Porque foram vendas de moedas de privatização (leia-se dívida de empresas estatais, qual seja, algo do tipo seu bolso esquerdo devendo dinheiro ao seu bolso direito) a prazo, portanto operações de mercado. E como operações de mercado bem ao gosto da época, sua taxa fora de IGP-M + 6,5% (para bom entendedor, quer dizer que o BNDES financiou parte razoável das operações de privatização dessa época, algo na linha do impacto dos 100 bi devolvidos sobre a dívida pública tal como lindamente observado pelo Bruno Galvão no Café dos 100 bi).

No meio dessa crise veio a TJLP. Ou Taxa de Juros de Lula e Pérsio. Pérsio dispensa maiores esclarecimentos. Lula é Luiz Orenstein. Possivelmente alguns dos economistas que aqui entraram tiveram que ler um artigo dele ou foram alunos dele na UFRJ. Foi diretor do Banco, saiu com o Pérsio para fundar o Opportunity com Daniel Dantas, picou a mula em menos de três anos se juntando à Dynamo. Doutor em ciência política sob a orientação de ninguém menos que Wanderley Guilherme dos Santos.

Em suma: a TJLP foi criada por dois cérebros de primeira. E foi criada para atender a um trabalho a ser feito que fora vaticinado por ninguém menos que Friedman:

“No ano de 1974, escrevendo um artigo intitulado Using escalators to help fight inflation para a revista Fortune e, posteriormente, produzindo outro artigo publicado pelo American Enterprise Institute for Public Policy Research em Essays on Inflation and Indexation o professor Milton Friedman, da Universidade de Chicago, advogou o emprego da correção monetária como um meio de evitar, se não diminuir, a fase transitória recessiva gerada por uma política apertada de combate à inflação.” (Queiroz, 1980)

Qual seja: o próprio Friedman entendia o problema. E o trabalho a ser feito em questão é bastante simples de entender: como manter o financiamento de longo prazo necessário ao investimento real das empresas quando os juros de curto prazo passam a se comportar de forma volátil, agressivamente dirigidos para um foco de curto prazo relacionado à inflação?

A solução foi bastante engenhosa e fora da mesmice endêmica nesta caixa de vidro preto: fazer uma taxa nova, desvinculada dessa TR que fora convocada a prestar serviços de estabilização anti-inflacionária. Numa época em que o BACEN tinha menos credibilidade e poderes do que tem hoje, essa taxa tinha uma fórmula: uma engenhosa conta envolvendo basicamente os yields dos Brady Bonds e um pouquinho títulos internos. Em si a fórmula não tem a menor relevância. Digamos assim, ela media o risco Brazil desconsiderando câmbio, inflação, política de combate à inflação etc.

E onde se lia TR+6% nos contratos passou a se ler TJLP. Ou melhor: onde se lia TR passou a se ler URTJLP (TJLP – 6%) capitalizada, com os mesmos 6% ao ano cobrados antes. Nessa brincadeira deu-se uma bela pancada nos juros e o Banco voltou a operar normalmente.

Cabe aqui outro esclarecimento… sobre funding. Desde a criação do PIS em 1970 o fundo foi a mais importante fonte de recursos do Banco. Mas, embora as operações com recursos do PIS constassem do balanço do Banco, concretamente elas não pertenciam ao Banco. Elas eram do PIS, que remunerava o Banco em 0,5% (com o risco ficando para o PIS) ou em 2% (risco ficando com o BNDES, que as recomprava em caso de inadimplência). Quando da substituição do PIS pelo FAT na Constituição de 88, por obra e graça do deputado José Serra e de seu assessor José Roberto Afonso (para quem não sabe, como o Lula, outro brilhante funcionário de carreira deste Banco), essa vinculação direta das operações deixou de existir, mas os recursos continuaram vindo do mesmo imposto. Fora isso, tinha os recursos externos.

A criação da TJLP foi um belo processo de plug and play que não afetou praticamente nada dessas relações. E passados os anos iniciais de implantação do real, TJLP e TR+6% não foram tão distintas assim. Até porque a TJLP passou a ser definida pelo CMN com base na meta de inflação. Até porque parte dos papéis que serviam para cálculo estava em extinção.

A TJLP foi o que nos impediu de ter uma desindustrialização definitiva, destrutiva, a doença pós-soviética para zoar com certo Pessôa. E continua sendo. Ela pode ser melhorada? Creio que sim, mas isso fica para depois do intervalo.

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• http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp07.htm• http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/129148/
lei-do-fundo-de-garantia-do-tempo-de-servico-de-1966-lei-5107-66

• https://www.richmondfed.org/~/media/richmondfedorg/publications/
research/economic_quarterly/2006/winter/pdf/walter.pdf

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