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Canibalismo 2.2 – Direitas Já

Paulo Moreira Franco – Economista, aposentado do BNDES

That night, fleeing from Transylvania, Professor Abronsius never guessed he was carrying away with him the very evil he had wished to destroy. Thanks to him, this evil would at last be able to spread across the world. (Por Favor, Não me Morda o Pescoço)

Vínculo 1515 – Creio que foi da boca de Maria Silvia que ouvi pela primeira vez a observação de Thatcher de que o new labour era seu maior feito. Décadas depois temos uma consequência: a tão temida direita que assola o mundo e a democracia hoje. A provocação que faço é que a morte da democracia é a razão pela qual essa direita existe, seja a nova nova direita que tem Thiel pot Soros, sejam as xenófobas direitas europeias. E que se há elementos disso por trás do fenômeno Bolsonaro, há um erro muito grande em entendê-lo como um fenômeno de mesma natureza.

Em continuidade com seus estudos de desigualdade, Piketty fez no final da década passada um artigo onde observa a contraposição entre o que ele chamou de esquerda brâmane versus a direita mercantil. O ponto: ao longo da história os partidos à/da esquerda representavam o eleitorado de baixa renda e baixa escolaridade. Hoje, no entanto, esses partidos teriam se tornado representantes da alta escolaridade, embora o grupo de alta renda se mantivesse com a direita. EUA, Reino Unido e França são casos que ele diretamente analisa, mas isso se observa noutros lugares. E nos últimos anos a inversão completa estaria ocorrendo.

Que tal conceituarmos o que observou Piketty de outra forma? Quem é alta renda sem ser alta escolaridade? O dono de um negócio. Aquilo que costumava se chamar pequena burguesia, a nation of shopkeepers que Thatcher reapropriou com orgulho. No lugar que é o paradigma de desenvolvimento industrial contemporâneo, a Coréia do Sul, estamos tratando de no mínimo um quarto da população autoempregada. Chegou a ser quase 40%, mas as reformas neoliberais levaram a uma redução desse número. Por quê? Porque pequenos comércios são possíveis num país onde barreiras impedem que o grande comércio os esmague.

Porque um procurador geral da República lavajatista foi eleito presidente por um partido conservador na Coréia do Sul não deveria ser nenhum mistério quando se olha para esse dado. Mas eu sugiro que o leitor procure uma das palestras do Ha-Joon Chamg sobre a Economia Política de Parasita (o filme ganhador do Oscar). É instrutivo.

Quem é a contraparte dessa direita mercantil que é a nossa boa e velha (pequena) burguesia? A Professional Managerial Class (PMC), os profissionais com alto nível de educação, alto credenciamento técnico que exercem seus papéis em governos, corporações, estruturas em que a complexidade exige governabilidade.

Burguesia e proletariado são frenemies, uma palavra cuja tradução para o português desconheço. Ao mesmo tempo inimigos na luta de classes, ao mesmo tempo parceiros nos interesses do nacional enquanto espaço onde a vermelha fraternidade da bandeira francesa ocorre. A PMC surge entre os dois, a complexidade da operação técnica demandando que o capitalista se faça representar no comando do negócio, nas etapas intermediárias.

Em Pós-Capitalismo, um livro de uma meia década atrás, Paul Mason fez uma interessante constatação de que o mecanismo de luta de classes – que produziu direitos do trabalhador como jornada de trabalho limitada, fim de trabalho infantil e um monte de coisas que nações civilizadas praticam – parou de funcionar nos anos 80. Sucesso de Thatcher, do neoliberalismo, da globalização, atribua ao nível que quiser esse feito. O fato é que a partir dessa década a renda dos trabalhadores nesses lugares se estagna. O crescimento é incorporado pelos mais ricos nesse mundo ocidental desenvolvido, e os trabalhadores da Ásia também são grandemente beneficiados. O que significa uma redução de desigualdade a nível global, mas um aumento de desigualdade a nível nacional, como mostrou Piketty no seu Capital.

O que tanto Piketty quanto Mason não levam em conta é que não só os trabalhadores brancos e pretos se ferram nesse processo, mas a mesma dinâmica chacina com a pequena burguesia. E esta, o mecanismo capilar pelo qual a circulação acontecia no mundo capitalista, começa a ser derrotada por estruturas de planejamento e logística muito além do que essas empresas possam operar. E estes dois conjuntos de derrotados se reagrupam politicamente debaixo dos novos/renovados partidos de direita.

Décadas depois a revolução thatcheriana representou o triunfo da finança (cujo capital não é próprio, mas dinheiro dos outros sob seu cuidado) e proprietários urbanos, versão contemporânea dos landlords que eram tão problemáticos ao funcionamento do capitalismo em Ricardo. Para Piketty, que define capital basicamente como algo que possa ser garantia, qual seja, moeda ou capaz de gerar moeda no processo financeiro, nenhum problema. Para quem olha capital como um dos fatores de produção, o buraco é mais embaixo.

Curiosamente, Wall Street, as grandes empresas de tecnologia (da pura abstração do Wark de que tratei no artigo anterior), as novas operações globalizadas que destroem com comércio local (tipo Walmart), a quase totalidade destas apoiou tanto Clinton quanto Biden. E, neste sentido, há algo de estranho quando se vê que o Grande Capital não está na direita, mas na esquerda. Ou quando Meloni acusa Macron de agir de forma imperialista em relação à África você entende que o sistema educacional italiano, que envolve ler Gramsci no segundo grau, produz pessoas à direita capazes de entender o Mundo melhor do que a esquerda americana contemporânea. “Alguma coisa está fora da ordem”, prestem atenção nisso.

Ah, sim, tem a questão do deep state. Mas essa vou tratar outra hora, prometo.

Portanto, amigo leitor, toda vez que você estiver vendo em nossa grande imprensa uma crítica a essas manifestações de caminhoneiros canadenses, coletes amarelos franceses, agricultores holandeses, alemães preocupados em como vão se aquecer no inverno e por aí vai ,saiba que a imprensa internacional (e o PIG) estará claramente mentindo quanto ao tamanho da manifestação (que será sempre muito maior que o exibido e que só será exibida se for numa proporção tal que não possa ser evitado) e à razão da manifestação (que tem mais a ver com os fatores econômicos do que qualquer questão xenofóbica, por exemplo, que seja usada para desqualificar os manifestantes).

Começa a cair a ficha para essas pessoas que elas não são mais classe média no sentido Graeber (o Estado e o Sistema trabalham em favor delas), mas que Bannon está certo e o Estado é o inimigo a ser combatido, não por uma questão de que atrapalha os negócios (o sonho de um Estado reduzido ao ponto de poder ser afogado na banheira), mas porque ele, seja o Estado público, seja o privado, é um inimigo de classe.

E nós? Bem, a Ipirangonomics do governo de Jair é, no mínimo, pré-2008. O que implica, num desejo extremado, a adesão a instituições do mundo globalizado (tipo OCDE), a uma prevalência dos interesses da finança sobre interesses produtivos concretos, mesmo os de natureza estratégica, e nenhuma defesa significativa do Nacional. Este foi um dos governos mais entreguistas da nossa história, não se duvide quando se for fazer a exumação do que se passou nos últimos quatro anos e dos dois anos e meio de regime golpista que o antecederam e, do qual, em alguns aspectos, Jair foi continuidade.

Por mais que haja em Bolsonaro elementos de uma teatralidade que parecem com Trump, eles são animais bem distintos. Jair continua mais votado pelos mais ricos e pelos de maior escolaridade. Ao contrário da Wall Street lá, a Faria Lima aqui está com a direita de Bolsonaro. Continuo com a minha leitura de quatro anos atrás: o bolsonarismo nada mais é do que uma versão atualizada e expandida do malufismo. Mescla de preocupações de segurança; uma visão rasa, pessoal de economia, generalizada para o mundo sem entender a natureza de partidas dobradas da realidade; uma percepção de corrupção onde o que se imagina dos outros é gravíssimo, mas suas próprias violações e crimes são inocentes pecadilhos. E por isso a parte teatral de Bolsonaro pode ser confortavelmente criticada na decadente imprensa, mas a ipirangonomics segue imune.

Cinco anos atrás o governo de “extrema” direita polonês reduziu a idade de aposentadoria, na contramão das reformas neoliberais europeias. Aqui, o atual governo quer reduzir o que é pago. Tá bom ou quer que desenhe?

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