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Carta aberta ao Bacen: desvendando sua caixa preta1

Luís Otávio Reiff – Economista do BNDES

(…) we must remind ourselves that there may be several slips between the cup and the lip. For whilst an increase in the quantity of money may be expected, cet. par., to reduce the rate of interest, this will not happen if the liquidity-preferences of the public are increase more than the quantity of money (…), Keynes, Teoria Geral.

Vínculo 1282 – Faz mais de 20 anos que Ben Bernanke e Mark Gertler escreveram o hoje seminal “Inside the Black Box: The Credit Channel of Monetary Policy Transmission”. Eles abordam um dos principais mecanismos que interfere na forma que a política monetária afeta o nível da atividade econômica. Trata-se do canal de crédito. Este é um dos muitos canais que tem sido identificados. Os outros são o canal da taxa de câmbio, do efeito riqueza, além do tradicional efeito direto dos juros. Muitos estudos têm sido feitos, mas ainda hoje não há um consenso nesta matéria.

Uma política monetária restritiva, segundo a teoria neoclássica, atuaria sobre a economia real através da elevação do custo de capital, que reduziria os gastos das firmas e das famílias com bens de capital, construção civil e bens de consumo duráveis e não duráveis, diminuindo desta forma o nível do produto. Entretanto, diversos estudos empíricos têm encontrado outros fatores que não o custo do capital afetando os gastos de firmas e famílias. Um problema adicional para a teoria neoclássica consiste no fato de que uma mudança nas taxas de juros de curto prazo não deveria afetar gastos em bens adquiridos a taxas de longo prazo.

Particularmente no Brasil, um importante debate recente é se a presença do BNDES poderia atenuar o prêmio de financiamento externo. Dado que suas taxas de juros não estão totalmente atreladas à meta da taxa do Bacen (Selic), mudanças nesta não provocariam a fricção no volume de crédito do BNDES (o mesmo se aplicaria aos financiamentos habitacionais e agrícolas). Este não seria ou seria menos afetado por choques de curto prazo na política monetária. A suavização do canal de crédito, provocada por créditos de fundos públicos, no mercado monetário reduziria a eficácia da política monetária.

Na teoria isso pode ser muito bonito, mas não esqueçamos que a própria existência da teoria do canal de crédito advém de evidências empíricas. Vamos a elas. Rodamos 13 diferentes modelos do tipo VAR (vector autoregressive), com cinco ou seis variações de cada. Somado aos modelos auxiliares foram mais de 80 estimativas. Utilizamos cerca de 20 variáveis. E isso ainda é um trabalho amador e preliminar. Um estudo profissional exigiria ao menos o dobro de investigações. Vamos aos resultados.

Em primeiro lugar, o resultado de maior interesse para o debate. A Selic, ou o diferencial Selic-TJLP, afeta o estoque de crédito do BNDES de forma diferente do que afeta o restante do crédito da economia? Dado um choque nos juros, o crédito do BNDES é menos afetado do que o crédito livre?

Contrariando a prescrição teórica, de que um aumento da Selic causaria mais impacto no crédito livre do que o crédito do BNDES, os resultados empíricos mostram um resultado na direção oposta. Um choque tanto na Selic, mas principalmente no diferencial Selic-TJLP, reduz o estoque do crédito do BNDES em relação à sua tendência em cerca de 1%, ao passo que o crédito externo ao BNDES é reduzido em cerca de 0,5%.

Obviamente que os resultados variam com as especificações. Quando a TJLP não entra no modelo, os resultados ficam equivalentes entre os dois créditos (queda em torno de 0,5%), mas mais favorável à versão teórica convencional, pois a duração do efeito da queda do crédito livre é maior. Enquanto que a queda do estoque do BNDES dura poucos meses e possui um elevado grau de incerteza, o crédito livre é mais preciso e sua queda é mais persistente. Cai continuamente até os primeiros 12 meses após o choque dos juros e permanece abaixo do nível anterior até dois anos após o choque.

Mas esse é o único resultado favorável à teoria convencional. Trata-se de um modelo restritivo em que além das variáveis endógenas (juros, preço, produção e crédito) há duas variáveis exógenas (câmbio e o crédito, livre ou BNDES, não endógeno). Simulacro de um sistema econômico engessado, com viés de variável omissa (TJLP). Em todos os demais casos, a hipótese de que uma política monetária restritiva afeta mais fortemente o crédito livre é rejeitada.

Basta desamarrar o crédito livre, permitindo que ele possa ser tanto substituto como complementar ao crédito do BNDES, para que o efeito do choque monetário neste se equipare ao primeiro em termos da sua distribuição ao longo do tempo e ser de maior valor. Logo, não deixando dúvidas sobre qual é o crédito que a Selic mais impacta. Se, ainda, adicionarmos a TJLP, tanto endógena como exogenamente, a história favorece a teoria não convencional, mesmo em um mundo restritivo e engessado.

Não há que se falar em meia-entrada ou perda da potência da política monetária devido a créditos via fundos públicos. Não há evidências empíricas a este respeito. Muito antes pelo contrário. E é fácil explicar. Quando se endogeniza o fluxo de empréstimos (desembolso) ao invés do estoque de crédito, e separando os vários BNDES (indústria, infra-estrutura, agropecuária e serviços), os resultados são surpreendentes. Pasmem, mas o fluxo de crédito para a infraestrutura é mais sensível à política monetária de curto prazo do que os empréstimos para a indústria e agropecuária. Os bens de consumo, petroquímico, eletroeletrônico e metal-mecânico se ajustam mais rapidamente e sofrem menos com um aumento da Selic do que as obras dos setores de energia, saneamento, logística e infraestrutura pública. Como os bancos privados (quase) não ofertam crédito para estes últimos, mas emprestam para os primeiros, este resultado é um indício de que o efeito do choque monetário pode estar muito mais relacionado ao setor econômico do que a taxa de juros subjacente. Um choque positivo da Selic tem causado um distúrbio tão forte na economia que setores mais sensíveis, ou seja, com margens estreitas e riscos elevados, são aqueles mais afetados. A indústria suporta um desajuste econômico com pequenas adaptações, reduzindo o emprego, trabalhando com capacidade ociosa, encontrando novos mercados. Para a infraestrutura e suas entregas de serviços não há para onde fugir.

Evidente que os resultados destes 80 modelos não cabem em parcas laudas. Certamente, um relato mais minucioso necessita ser executado. Mas, antes de finalizar, um efeito, por mim ainda pouco compreendido, chama a atenção. Trata-se do comportamento do IPCA, o índice de preço utilizado. Seu impacto no crédito é de igual ou maior magnitude e possui a mesma e até mais longa duração do que a Selic. Independentemente se é crédito público ou privado, o efeito é o semelhante. Particularmente, este efeito é observado quando a variável do crédito é o estoque e não o fluxo. É sabido (pelas estimativas) que um choque no IPCA provocou a deterioração da atividade econômica em 1% ao longo dos 12 meses subsequentes e levou a um aumento de 50 pontos na Selic nos primeiros 6 meses. Mas por que reduziria o estoque de crédito e não os novos empréstimos? Será que o grau de indexação do IPCA na economia, via preços administrados e dívida pública, explica? Tento desvendar em outra oportunidade ou no botequim da esquina.

Por ora cabe solicitar, no momento em que o Bacen é obrigado a dirigir uma carta aberta à nação, explicando porque seus modelos de curto prazo não foram capazes de prever o choque positivo de oferta agrícola combinado com o choque dos preços administrados, que se abram os modelos. Aumentemos a transparência sobre as estimativas que tanto afetam nossas vidas. Ofereço-lhes as minhas. São modestas, amadoras, incompletas e imprecisas, mas mostram que há mais coisa entre a taça e os lábios que possa supor nossa vã filosofia. Não necessariamente um afrouxamento monetário, ou via redução da taxa básica das reservas bancárias ou via expansão do crédito, redundará em um aumento de preços, um incremento da atividade econômica, uma elevação dos investimentos, um acréscimo no emprego. Ou qual é a magnitude e a extensão no tempo. E a pergunta de um US$ 1 trilhão. Será que a política monetária tem sido a responsável pela estabilização de preços no Brasil nos últimos 15 anos? Volto ao tema em breve!

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1 Este texto é a atualização de um trabalho realizado em 1999, orientado pelo Prof. Fernando Cardim, a quem agradeço e presto uma homenagem. Todos os erros e omissos são exclusivos meus

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