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Coronavírus e o retorno das políticas sociais e as V-2 Brasileiras

Paulo Faveret – Economista do BNDES

Vínculo 1390 – Há 27 anos, publiquei um artigo no Jornal do Commercio intitulado “As V-2 brasileiras”. Falava sobre a Ação da Cidadania do Betinho. Eu procurava contextualizar os esforços realizados na época para a erradicação da fome no país. A iniciativa se inscrevia numa longa luta pela redução das desigualdades sociais, cujas raízes mais imediatas então podiam ser encontradas na “Constituição Cidadã” e no “Tudo pelo Social”, de Sarney. Após a década perdida (1981-89), que se seguiu a um longo período de crescimento acelerado, porém desigual (1950 a 1980), a tolerância com a desigualdade parecia diminuir rapidamente e Betinho personalizou e liderou um movimento intenso e focado.

Essa trajetória iria desaguar em evolução das políticas de saúde, educação e assistência social em um quase contínuo desde os governos FHC até Dilma. Apesar das variações de ênfase e forma, parecíamos ter entrado em amplo consenso pró-redução da desigualdade secular, cujas raízes podem ser traçadas desde a escravidão e outros macroprocessos sociopolíticos brasileiros. No entanto, nos últimos dois anos esse leito da história parecia ter sido esvaziado quando o novo coronavírus fez sua entrada diabolicamente magistral no palco mundial.

Otimistas pensam que a pandemia pode revigorar sentimento de unidade entre os brasileiros. Ninguém está a salvo da contaminação e o risco de morrer é função da idade mais que tudo, independente de classe social e local de moradia. A taxa de contaminação se acelera mais rápido em virtude das péssimas condições de nossas cidades. A questão da desigualdade volta à primeira página de maneira espontânea e vigorosa e empurra uma agenda de políticas públicas (sociais) que andava esquecida.

A pergunta chave é: o coronavírus funcionará para o Brasil na década de 2020 como as V2 funcionaram para a Inglaterra após a II Guerra Mundial? Haverá uma reconfiguração dos sistemas de proteção social em favor de abordagens mais coletivistas e menos corporativas ou segmentadas? O setor público assumirá novo protagonismo e em que formato? Quais serão os padrões de articulação entre os três setores – estatal, privado e ONGs? Como o local por excelência da vida em sociedade – a cidade – será tratado daqui para frente?

Na saída da Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra montou um sistema de proteção social cuja amplitude deu origem ao termo Estado de Bem-Estar Social (Welfare State, em inglês). Sir William Beveridge foi o responsável pela elaboração do relatório que, batizado com seu nome, cunhou o termo que iria, dali para frente, designar um conjunto de tarefas do Estado orientado pelo princípio da “divisão de riscos” em nome da solidariedade social.

Se há situações de risco que são, por definição, sociais e fora do controle dos indivíduos – como velhice, acidente de trabalho e doença –, seu enfrentamento deve ser também social. Mais ainda, a solução deve ser centralizada para garantir a homogeneidade entre indivíduos, daí a necessidade da intervenção do Estado.

A política de saúde britânica levou esses princípios à máxima materialidade. Financiado por recursos públicos, ou seja, por toda a sociedade, o Sistema Nacional de Saúde passou a oferecer para todos os ingleses, sem distinção, um serviço de alta resolutividade, baseado numa imensa rede de hospitais públicos.

Tamanho e tão duradouro foi o sucesso deste arranjo institucional que nem sequer Margareth Thatcher ousou tocar em seus princípios básicos. Para ela, “o princípio de que a atenção adequada à saúde deve ser fornecida para todos, independente da capacidade de pagamento, deve ser o fundamento de quaisquer esquemas de financiamento do serviço de saúde”. Ao sair do hospital público, Boris Johnson disse “é graças a essa coragem, dedicação, dever e amor que nosso NHS tem sido imbatível”. Na Inglaterra, nem liberais de credenciais impecáveis ousam mexer em um dos pilares da sociedade.

Pelo menos dois fatores explicam o surgimento do Estado de proteção social justamente no berço do liberalismo: uma longa tradição reivindicatória dos movimentos trabalhistas, que reforçaram contínuos alargamentos do escopo das políticas sociais até se alcançar o nível dos direitos sociais; e a Segunda Guerra Mundial, cujos impactos peculiares na Inglaterra estimularam o desenvolvimento da noção de divisão de riscos como elemento central da estratégia de sobrevivência social. Afinal, as bombas V-2 caíam sobre trabalhadores e capitalistas indistintamente. “Home fit for heroes” foi um mote que inspirou políticas habitacionais amplas após a guerra.

Creio que deveríamos – nós, no BNDES, e o país – dedicar mais tempo a pensar sistemas socioeconômicos e não apenas processos e políticas isoladas. Temos trabalhado com visões muito fragmentadas dos principais problemas complexos. Talvez seja a hora de um esforço mais ambicioso de abordagem sistemática e abrangente com inclusão de todas as dimensões relevantes da vida nacional, não apenas a econômica, que tem dominado as demais. Nenhum país do mundo erradicou pobreza com políticas sociais compensatórias nem focalizadas. Elas são úteis em algumas situações, mas sem tratar o modelo de desenvolvimento não resolverão questões estruturais, ainda que possam ajudar muitos indivíduos.

A noção de “negócios de impacto social” deveria ser repensada. Não me parece à altura dos desafios de gestão da complexidade quando se trata de redução das desigualdades estruturais. O somatório dessas iniciativas não fará o país atingir objetivos abrangentes em termos de cidadania. Isso não aconteceu em nenhum país. É uma questão histórica. Os que lograram diminuir desigualdade se basearam em políticas públicas abrangentes, em lutas políticas intensas, em respostas coerentes das elites e em elementos da cultura coletiva (que mudaram ao longo do tempo, diga-se de passagem).

Louvo as diversas e volumosas iniciativas de empresas, entidades várias e indivíduos. A solidariedade é essencial em meio ao caos. Porém, precisamos reconhecer que movimentos essencialmente voluntários e temporários não se transformarão automática ou necessariamente em políticas públicas duradouras. Existe um veto velado à adoção de políticas abertamente redistributivas, através do Estado, na direção dos despossuídos. E esse é um veto substantivo, que opera por debaixo da própria lei, pois a Constituição de 88 assumiu os mesmos princípios e dotou o Estado brasileiro dos mesmos instrumentos de outros Estados de Bem-Estar Social.

Não é uma barreira jurídica, formal, que impede o avanço da cidadania. Ela é política e ideológica. Enquanto a casa-grande e a senzala não se encontrarem na mesma fila do hospital ou se sentarem no mesmo banco escolar, as chances de passarmos de Betinho a Beveridge são remotas.

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