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Desvio contra o Vermelho

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“Todos falam sério
Todos eles levam a sério
Mas esse sério me parece brincadeira”
(Rita Lee/Paulo Coelho)

Vínculo 1543 – As pessoas que trabalharam comigo no Banco sabem que nunca acreditei por um momento na Operação Lava Jato. Não por ser um entusiasmado petista (mais conformado do que entusiasmado na realidade) como alguns certamente avaliavam. Mas nunca acreditei nem nos propósitos, nem na honestidade dos paranaenses envolvidos no que pra mim sempre foi um ato de guerra federativa contra o Nordeste. Ou quem sabe de racismo? Afinal, não tivemos uma rapper paranaense praticando a mais deslavada discriminação contra as pessoas de DNA mitocondrial indígena do Nordeste na intimidade do BBB? Falando nisso, minha cara leitora, atravessando as fronteiras sociais do Brasil, Renan Calheiros é branco em que lugar da América Latina? A América Latina não se encaixa no modelito racial americano, bem como o Brasil não se encaixa bem em nenhum dos dois.

E por isso por vezes a tradução literal da política de um lado para outro não funciona. Afinal, assim como os americanos chamam de football um jogo onde raramente se chuta a bola, o uso deles da palavra liberal é bem distinto do restante do mundo. Liberal naquela língua de gringo é entendido como oposto ao conservador, algo meio que relacionado a costumes, algo como meio de esquerda. Anos atrás eu traduziria liberal para tucano, quando o PSDB ainda era de centro-esquerda e dividia com os democratas a capacidade de nunca ser processado por seus escândalos de natureza financeira. Mas da loucura do pré-golpe em diante aquilo que foi o partido de Covas, Montoro e Serra se transformou em um gradual colapso à direita, não restando de fato mais nenhuma liderança de destaque (e não me venham com o derramado Leite, aquele que enquanto Liberal Gaúcho, Bolsonarista e Tucano, Quer Incluir Algo mais?, postulou a terceira via). Num certo sentido, os Democratas, condenados a um presidente senil, incapaz sequer de fazer uma coletiva de imprensa sem perguntas pré-programadas, se encontram na cilada parecida de não ter nenhuma liderança aparente que possa transcender ao mundinho da sua polity estadual.

Assim como para o Reinaldo Azevedo, difícil não se divertir com a cassação da candidatura de Dallagnol. Afinal, é a lei, implacável lei. Por mais que ache (como o Reinaldo) a Lei da Ficha Limpa algo escroto, lamentável, antidemocrático, ainda assim é a lei. A democracia produz resultados assim, resultados que não nos entusiasmam, resultados com os quais a gente se conforma, leis absurdas em nome da moralidade dos tempos. Portanto, ver a cabeça de Robespierre passar pela máquina zero de madame guilhotina não tem preço. Todo tipo de choro será feito por esta fraude, mas duvido que um fio de peruca se mova tentando salvar Deltan. Duvido que lágrimas serão derramadas em público em nostalgia aos coquetéis platônicos. O próximo é Moro, o patético Moro, e por aí para, creio.

Por que para nos eleitos do Paraná? Ah, aí temos o problema do conceito de deep state. O que é deep state? No Cambridge Dictionary:

organizations such as military, police, or political groups that are said to work secretly in order to protect particular interests and to rule a country without being elected:

The idea that there is a deep state governing behind the scenes is dismissed by some as a conspiracy theory.

Uma boa, confortável definição, inclusive com o alerta de que isso é teoria de conspiração, “mexe nisso não menino”. Falta o Judiciário, mas tem no exemplo do verbete.

No Webster deep state é definido como:

an alleged secret network of especially nonelected government officials and sometimes private entities (as in the financial services and defense industries) operating extralegally to influence and enact government policy

Podemos enxergar essas definições confortavelmente nas mensagens do próprio Dallagnol nas conversas desveladas na Vaza Jato? Hum… sim, um conjunto de funcionários públicos conspirando para remover determinado grupo político do governo. Como limited hangout que foi (cadê a conversa de Deltan com Rocha Loures na véspera do Golpe relatada na Folha?) na Vaza Jato, se soube ao menos como um determinado grupo de procuradores trabalhou para incriminar e derrubar o PT e o presidente Lula. Temos também Sérgio Moro participando várias vezes de eventos do LIDE, birosca de convívio empresarial centrada em João Dória. Temos as boas relações entre as polícias federais do Paraná com esse grupo de procuradores, algo que foi alvo de ironia de Jair Messias quando da degola de Moro.

Mas uma coisa que a maioria das pessoas que usa o termo desconhece é que ele se origina na Turquia. E lá:

The concept of the deep state can be traced back to Turkey, where an alleged network of military officers, intelligence operatives, policemen, organized crime figures, academics, journalists, and politicians work behind the scenes as a sort of shadow government.

E nessa definição nós temos alguns atores novos. Nessa definição aparecem os jornalistas e os políticos. Não é mais uma conspiração de não eleitos da burocracia de Estado, mas uma rede com muito mais gente interessante, e muito mais permanente. E nela aparece a expressão crime organizado.

Não só de Deltan vive o desvelamento da Lava Jato no momento: há também as denúncias de Tacla Duran e o livro do Odebrecht. E um dos elementos da denúncia de Tacla, muito mais do que os processos de extorsão tópica praticados pelo Judiciário e por advogados do Paraná, é a venda de proteção continuada para os doleiros, o braço mais visível e socialmente aceito do crime organizado. Crime organizado não é só máfia e milícia, são também Comandos além do Vermelho.

Relembremos o estranho caso do helicóptero com mil libras de cocaína, que acabou ficando por isso mesmo. Reinaldo Azevedo mostrou na época que a conta não fechava, não tinha como o helicóptero ter feito aquele voo sem umas paradinhas. Essa é uma pontinha de um iceberg que ninguém quer ver desvelado. Falar da familicia é fácil: um bando cômico de arrivistas, falando bobagens para salivação à esquerda e à direita. Encarar o quanto os tráficos, seja de influência, seja de mercadorias ilegais, seja de divisas, opera nas escuras desse nosso aparato público, aí o buraco é mais embaixo. Uma ponta aqui outra ali vez por outra aparece, mas logo some.

Nas cores trocadas de quando se vai para a terra do soccer, esta semana veio finalmente à tona o relatório sobre o Russiagate. Não havia nada, não havia justificativa alguma para a acusação, sequer para se começar uma investigação. O governo Trump ocorreu sob a pressão dessa acusação fantasiosa repetida diariamente por uma grande imprensa que se diz muito preocupada com fake news e com a expansão de uma mídia alternativa “antidemocrática” de direita.

Nessas últimas semanas também se soube que gente da ativa da CIA esteve envolvida na originação da carta de ex-agentes de inteligência insinuando que a história do laptop do filho de Biden seria desinformação russa. Toda uma intervenção de censura a essa “fake new” publicada por um dos mais antigos jornais americanos foi feita nas plataformas. Só que era verdade. O deep state, na concepção turca da palavra, operou para derrubar Trump.

Estamos muito acostumados a olhar a política sobre o prisma de direita-esquerda, sob o prisma das propostas de cada grupo. Num certo sentido isso é um erro: há que se olhar os atores, os cui bonos, as estruturas que estão por trás. Há que se olhar o concreto. Há que se olhar que a ação do deep state contra os diferentes vermelhos em cada lugar é sintoma de quais grupos estão excluídos no arranjo neoliberal local.

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