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Kursk, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“Nas cadeiras vazias de todos os lares
Perguntam os mortos porque foram mortos”
(Paco Bandeira e Sidônio Machado)

Querido primo,

Desculpe não ter respondido a ligação naquela hora, travado uma conversa de hora ou mais, que é o que teríamos feito. Caminhava naquela hora da noite pelas ruas do Flamengo, célere para ver meu Botafogo enfrentar o Palmeiras pela Libertadores. Aí então, era plena madrugada, já quinta.

“Que raios os ucranianos foram fazer em Kursk?”, tu perguntas. Boa pergunta. Ninguém sabe ao certo. Vitória do Botafogo consumada, cervejas consumidas, sono que chegou atrasado, serei bastante breve nesta manhã ensolarada de quinta (não tanto quanto aí nos Montes, mas estamos na vez do teu hemisfério), faço-te um apanhado de diferentes hipóteses que vi no YouTube e nos canais de Telegram que acompanho.

A mais oficial é que os ucranianos queriam tomar algum território para poder ficar numa posição de negociação melhor. Trocar pedaços conquistados de território russo por território liberado do que teria sido um dia Ucrânia. Este é o mesmo discurso que é dado, de um ano para cá, toda a vez que a Ucrânia fez uma ofensiva, recebe armamentos, dinheiro etc.: melhorar a posição ucraniana na véspera de sentar para negociar. Seria a versão militar-diplomática de se fazer uma reforma meia bomba num apartamento em mau estado para poder vendê-lo mais caro a um comprador incauto.

Isso raramente funciona. Quando o comprador do imóvel tem bala na agulha (ou garrafa pra vender, usando uma expressão futebolística do meu tempo), ele compra o imóvel já pensando na reforma. O que está ali que está velho e não funciona vai ser posto abaixo. O gasto que se fará reformando é apenas uma mudança de estorvo para o novo proprietário.

Pegue-se a Rússia, neste caso o comprador com muita bala na agulha: ela quer a desmilitarização e a desnazificação da Ucrânia. Coisas simples, correlacionadas. Desnazificar, isto é, banir constitucionalmente o culto àqueles que lutaram ao lado de Hitler na Segunda Guerra não é algo tão difícil assim. Basta destruir as estátuas, banir os livros de hagiografia de Bandera e da OUN. Basta restaurar todas as estátuas e monumentos celebrando a vitória na guerra, seus heróis, celebrando ícones da cultura russa. Basta permitir que o russo, língua usada na Ucrânia como o espanhol também o é no outro lugar chamado Galícia, seja uma língua oficial em pé de igualdade com a língua ucraniana. Fazer do exército ucraniano uma força incapaz de ameaçar qualquer vizinho, impedida de “fazer exercícios” com países da OTAN, algo também muito fácil. Mais complicado vai ser prender os criminosos de guerra atuais, neonazistas de grupos como os membros do antigo batalhão Azov, por exemplo. Um tratamento Bukele, pegar todas as pessoas com tatuagens que remetam a nazismo e tacá-las numa boa e calorosa prisão, é um bom primeiro passo nesse sentido. Sim, direitos humanos blá-blá-blá. Gente: o Ocidente coopera com/legitima um genocídio acontecendo explicitamente desde outubro do ano passado. As pessoas em Guantánamo estão presas sem julgamento tem mais de duas décadas. Cadeia para eles enquanto cada caso é estudado.

Achas que a Ucrânia (ou a OTAN) está disposta a aceitar esta realidade?

(Aqui cabe um pequeno aparte: uma variante desta mesma hipótese é de que os russos teriam que desviar forças no Donetsk para resistir à invasão ucraniana. Isto é uma ilusão ainda mais grave: os russos têm forças de sobra no território russo para convergir sobre aquela ameaça. Como li num comentário no Telegram, ali há algo que não há no Donbas: espaço. Um recurso que torna muito mais fácil a mobilidade das forças russas.)

Como podes perceber, esta hipótese é uma fantasia. Um ataque de fancaria como este não resolve nada. Mas resolveria a necessidade de, passado o ciclo de notícias olímpicas, preencher o espaço que vai até a convenção democrata da semana que vem. Lembras-te o que escrevi sobre as condições de vitória diferentes de cada jogador? Continua válido. Apenas substitua o nome fantasia Joe Biden por qualquer coisa que queiras chamar ao establishment em torno do aparato deep-state+democratas.

(Pequena digressão demente adicional: pegando um discurso do próprio Zelensky, o presidente expirado da Ucrânia, Kursk pode ter sido escolhida só para se comparar com um submarino afundado um quarto de século atrás)

Há uma outra hipótese, mais sombria, que está presente, por exemplo, neste episódio da análise diária do Alexander Mercouris. A hipótese de que o objetivo dos ucranianos seria tomar a usina nuclear de Kursk e ameaçar com um novo episódio como o de Chernobil, forçando uma negociação russa para evitar uma tragédia maior. Uma Opção Sansão de pobre. Além de monstruosa, apenas para as iludidas pessoas sob a imprensa ocidental não será clara a autoria desta ação: a OTAN em si. Qualquer ação nuclear sobre a Rússia não será respondida em Kiev, mas em Washington. (Assim como a própria Opção Sansão: os apologistas envergonhados do genocídio têm que se lembrar que Sansão morre no final, vítima do mesmo teto em Gaza que ele pôs abaixo.)

Qual a razão, então? Sei lá eu! Esta é uma guerra que, de fato, acabou dois dias depois de ter começado. A ilusão a mantém, a ilusão cada vez mais desesperada, pois, politicamente, as forças que promoveram esta guerra estão cada vez menos populares no Ocidente. Cada vez mais lutando pela própria sobrevivência.

Abraços,

Paulo.

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