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Liberalismo: desmonte do Estado em prol de quê?

Celso Evaristo – Empregado do BNDES; diretor institucional (2) da AFBNDES

Vínculo 1331 – O pós-guerra desemboca, quase que de imediato, na divisão do mundo em dois blocos antagônicos: o dos países socialistas, liderados pela URSS; e o dos capitalistas alinhados com os EUA. Foi o início da chamada Guerra Fria. A fase de reconstrução propiciou período de crescimento econômico significativo em muitos países de ambos os blocos até o final dos anos 70. A queda do Muro de Berlim, em 1989, foi o marco histórico do fim dessa época.

O desenvolvimento econômico dos países ocidentais no pós-guerra arrefeceu, em parte, as contradições do sistema capitalista nos países centrais. O Estado do bem-estar social (Welfare State) manteve o conflito de interesses entre as classes sob relativo controle. Além do que, a simples existência de um contraponto representado pelo bloco socialista obrigava as elites dos países capitalistas a fazerem concessões às classes trabalhadoras para evitar qualquer tipo de simpatia pelo bloco adversário e seus ideais igualitários. O campo da esquerda fortaleceu-se na Europa Ocidental, em especial, na Itália e França e, como decorrência da redemocratização, em países como Grécia, Portugal e Espanha.

O desenvolvimento tecnológico tornou possível a abundância, cabendo ao Estado e à representação política garantir a prosperidade social, gerenciando a redistribuição da renda advinda do crescimento econômico. Tal descrição da realidade socioeconômica é bastante válida, ao menos, para os países centrais. Na periferia do sistema, os conflitos sociais mantiveram seus contornos dramáticos, com algumas ilhas pontuais de tranquilidade e crescimento relativo da economia.

Em paralelo ao sucesso da social democracia europeia do pós-guerra, uma discreta porém bem articulada reação teórico acadêmica contra o Estado intervencionista e de bem-estar social é desenvolvida na Europa. O marco inicial dessa corrente é a publicação do livro O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek (1899-1992), vencedor do prêmio Nobel de Economia de 1974. É uma obra de defesa intransigente dos mecanismos de mercado enquanto elementos únicos de promoção do desenvolvimento econômico e social dos povos. Nessa perspectiva, a intervenção do Estado, por menor que seja, é vista como uma ameaça frontal às liberdades econômica e política.

Hayek reuniu, em Mont Pèlerin – Suíça, em 1947, um grupo de pensadores e economistas de orientação ideológica liberal para avaliar as tendências da economia mundial e estabelecer uma estratégia comum de atuação. Estiveram presentes não somente adversários firmes do Estado do bem-estar europeu, mas também inimigos declarados do New Deal norte-americano: Milton Friedman (1912-2006), Karl Popper (1902-1994), Lionel Robbins (1898-1994), Ludwig Von Mises (1881-1973), George Stigler (1911-1991), Walter Eucken (1891-1950), Walter Lippmann (1889-1974), Michael Polanyi (1891-1976), Salvador de Madariaga (1886-1978), entre outros. Desse encontro surge a Sociedade de Mont Pèlerin, uma associação de revalorização do liberalismo econômico que desembocaria mais tarde no ideário neoliberal. Seu propósito era combater o keynesianismo e as diversas matizes de socialismo.

O objetivo final seria preparar as bases conceituais, os alicerces para o retorno à essência do capitalismo – eliminação de qualquer tipo de intervencionismo estatal e liberdade absoluta para a atuação das forças de mercado, sem nenhuma forma de regulação.

Dadas as bases teóricas e direcionadores de ação e as políticas neoliberais implantadas, a princípio, pelos países anglo-saxões a partir do último quartel do séc. XX, as classes trabalhadoras sofreram duro golpe tanto nas conquistas consubstanciadas no Estado do bem-estar social quanto no espaço político de sua representação. A queda do socialismo real trouxe ainda mais munição para o arsenal do liberalismo renovado. A dimensão política foi sendo esvaziada progressivamente de seu conteúdo transformador. A política – e com ela os elementos mais participativos da democracia – foi relegada à ‘gestão da coisa pública’. O conceito de gestão foi transposto da seara do mundo corporativo para a administração pública, na forma do discurso gerencialista.

A corrente liberal ganhou força não só nos países centrais do sistema, mas também nas economias periféricas, incluso o Brasil. A imperturbável vitória do liberalismo econômico e político, para essa matriz ideológica, significou não apenas o fim da Guerra Fria, ou a consumação de um determinado período da história, mas o próprio fim da História como tal: isto é, o ponto final da evolução da humanidade.

A força do capitalismo e sua economia de mercado, no plano econômico, e a universalização da democracia liberal representativa, no plano político, seriam a expressão definitiva desse ápice civilizacional. Essa foi a constatação de alguns intelectuais orgânicos do sistema. O pensamento ícone deste período é o do assessor do então presidente norte-americano Ronald Reagan (1911-2004), Francis Fukuyama. É dele a tese do fim da história nesse final do século XX. Ele escreveu um ensaio original – mais tarde transformado em livro – propondo que a humanidade atingira o ponto final de sua evolução ideológica com o triunfo da democracia liberal. O equivalente na economia dessa resultante histórica seria o capitalismo liberal. Com as derrotas do fascismo e do socialismo real, esse seria o único caminho a ser trilhado pela humanidade.

Todavia, a crise de 2007/8 abala a onda triunfalista neoliberal. O culto ao mercado desregulamentado, a defesa intransigente do Estado mínimo, a incorporação pela administração pública das práticas de gestão baseadas no discurso gerencialista das grandes corporações – principais pilares do novo liberalismo – foram atingidos em cheio pela crise. O Estado mostrou-se muito mais vital para o equilíbrio do sistema capitalista do que preconizava o discurso liberal.

A desregulamentação do mercado, em especial o mercado financeiro, promovida na era Reagan/Thatcher, agudizou a concentração de capital nas mãos de grandes conglomerados financeiros, provocando a alavancagem dos bancos e movimentos especulativos a níveis inimagináveis – as denominadas ‘bolhas especulativas’. Essa tendência foi uma das determinantes da crise que se iniciou em Wall Street, se espalhou pelas economias centrais, e cujo desenrolar encontra-se longe de ter chegado a termo.

A crise sistêmica foi evitada graças à intervenção anticíclica dos bancos centrais e outras instituições estatais na liberação de crédito (BNDES inclusive) para a cambaleante economia ocidental, sem falar no efeito revitalizador provocado pelo dinamismo das economias dos países emergentes, tais como China e Índia.

As recentes tragédias humanitárias e ambientais têm deixado claro o imbróglio civilizacional em que estamos metidos, caso insistamos nesse modelo mental do liberalismo. O fato inequívoco é que: a efetiva elevação da qualidade da vida humana não tem sido o objetivo principal do sistema no mundo, mas um subproduto; a ocupação básica tem sido acumular capital. Onde surgiu um conflito entre fazer dinheiro e elevar o padrão de vida alicerçado na segurança coletiva, a preeminência tem sido do primeiro. O drama dos refugiados, Mariana e Brumadinho são exemplos emblemáticos dessa situação.

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