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Milícias

Paulo Moreira Franco – Economista do BNDES

Agora chegou o momento em que, kafkianamente, a larva de 2013 rompe o casulo costurado em 2016, e podemos dizer “I, for one, welcome our new insect overlords” ao ungeheures Ungeziefer.

Vínculo 1342 – Tem meio ano (já havia o eleito, mas ainda não se viam os Araújos) que as musas me fizeram psicografar este fragmento de texto, uma espécie de mensagem profética sobre um chefe de executivo cuja imagem vai se tornando mais bizarra, mais asquerosa a cada momento. Desejaria ele ao menos que fosse uma barata de Madagascar tal como descrita por Fernanda Young num pequeno romance tem uma década? Não sei. Mesmo nisso parece que há decepção: com nojinho, rápido e pequeno, que Patrícia Lélis não percebeu que é uma mera tradução do nasty, brutish and short de Hobbes. Aliás, guiados pela eminência groselha, o vilósofo de Carvalho, Jair e seus filhos lembram o episódio mitológico de Laocoonte e seus filhos, atacados por dois distintos Marinhos (sendo um suplente e outro a robertíssima trindade do filhodo filho e do filho), pagando por seus pecados contra Apolo. No caso contemporâneo, a Vênus Platinada parece ser a divindade que os fustiga. Alguém lembra dela? Assim se chamava a Globo quando regiam a Ordem, o Progresso, os militares e o AI-5.

Nasty, brutish and short… subversão das coincidências, este que é talvez o trecho mais conhecido do Leviatã fica no capítulo XIII, no seguinte parágrafo:“Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, (…) não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.”

Da liberação de armas para a própria defesa ao regime pauloguediano de capitalização para a Previdência, vocês identificam a passagem acima acontecendo? De Cásper da Costa dizendo um “se precisar fechar, fecha” para as indústrias que ameaçam abandonar o ABCD, a um Ministério da Educação onde uma versão burocrática da trilogia de O Ultraje (Autoreiji) acontece nas páginas do Diário Oficial, vocês identificam a passagem acima? E no ensino de filosofia nas universidades do Nordeste? E no fim do horário de verão? E na “violenta emoção”?

Mediana entre as palavras Marielle e Muzema é bem possível que esteja a palavra Milícia. Mediana entre as datas, a saída do hospital, intestino refeito, e o câncer que se espalha fora dele: a ideia de que o indivíduo no mundo privado irá prover a ordem ao invés do Estado. A milícia é isso, o estado final de privatização das funções públicas. Se o Estado europeu, ocidental, westfaliano, se fundou na oferta de “proteção” (e aqui não invento, apenas reverencio um artigo clássico de Charles Tilly), a generalização da milícia no provimento da ordem e na extração de rendas sobre serviços é apenas a reversão final de um estado burocrático submetido a toda a forma de privatização possível.

Vocês querem saber o que é um mundo privatizado? Uma favela carioca é um mundo privatizado. Numa favela carioca o espaço público, o espaço reservado a ruas e calçadas, é da ordem de 5%. Em Nova Iorque é 30%. Essa é uma das divertidas ilusões do discurso do mercado nesta terra, coisa que um cara que apareceu após Guedes cristalizar suas certezas sobre o mundo – Paul Romer, Nobel em 2018 – nota. E pode parecer paradoxal eu citar um cara que propõe charter cities, mas a ideia dele é indissociável dos sucessos de Cingapura e de Shenzhen. E ambos os casos não são o Mercado por si só, a ficção friedmaníaca dos agregados antediluvianos do bolsonarismo. Ambos os casos são Estados ativos, bastante ativos, em nada ordoliberais, para desespero dos alemães, por exemplo, pra quem começa a cair a ficha que o papinho de média empresa e competitividade é caminho rápido para a segundona.

Há uma piada clássica, que envolve um indivíduo que se supõe sob um problema de silente e inodora flatulência, mas que se revela ao final como portador de alguma temporária deficiência nos sentidos de olfato e audição. Pois hoje se descobre que José Padilha sente um cheiro estranho e, cinicamente, gargalho um “what took you so long, tolinho”. Porque, dessa grande piada cósmica em que estamos imersos, Padilha é um dos maiores responsáveis. Padilha e seu Capitão Nascimento, o trágico e covarde psicopata do primeiro filme transformado em herói coxinha no segundo. A normalização de Jair começa ali, o papel que ele encenou de lá pra cá diferentemente de sua trajetória sindical, como brilhantemente observado por Cesar Maia numa entrevista recente (não que isso fosse novidade, pelo menos pra mim).

Zizek nos fala de um complexo poético-militar que cria as bases de um massacre, que antecede às ações da política, à tortura, aos snippers. Os capitães-nascimento são isso, construções poéticas, profetas da despolitização do mundo, da ilusão da possibilidade de uma pureza técnica sobre a desordem nacional.

A milícia, repito, é só a etapa final da privatização de tudo. Mas o mal não para por aí.

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