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O copo cheio dos juros altos

Paulo Moreira Franco –  Economista aposentado do BNDES

“We made too many wrong mistakes”
(Yogi Berra)

Vínculo 1535 – Meio-dia da terça (21), findo o seminário Estratégias de Desenvolvimento Sustentável para o Século XXI. A sempre decepcionante sensação que tinha muito menos gente do Banco assistindo na plateia do que deveria ter tido. Com minha paixão artística pela economia, ver Stiglitz ao vivo já justificava me despencar para o Centro. Com a adorável Marianna no pacote, com a chance de ter aquele elenco de pessoas discutindo este tema, imperdível! E mesmo que desapontadores, se aprende bastante coisa em eventos desses até pelo que ficou de fora, pelo discurso que as pessoas escolheram trajar ali.

Um amigo do Banco fala, feliz, que foi um sucesso. Razão: um consenso de que os juros altos são um problema. E de que os juros altos não se justificam. E que a situação de dívida pública brasileira perto do que existe no restante do mundo é, para ser um pouco ufanista, exemplar. Na interpretação desse colega, bem como de algumas outras pessoas com quem conversei, a ideia de que a imprensa estaria vendo e transmitindo aquilo, por si só, já seria um avanço.

Jayati Ghosh, a única pessoa ali que eu nunca tinha visto antes, seja ao vivo, seja no Youtube, fez a interessante observação que masoquismo é única explicação possível para se justificar o superávit primário praticado aqui. Acho que ela desconhece que uma das coisas que não sofreu críticas ali foi a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que tem no seu DNA o sadomonetarismo implícito das instituições de Maastrich.

Ao invés de entrar diretamente na discussão do que foi interessante e do que na minha opinião faltou no exato par de dias em que outro ordenamento do mundo se tornava explícito, vou tentar fazer uma interpretação aqui sobre a questão dos juros altos. Porque, se algo faltou ali, em reconhecido por todos que a situação fiscal não justifica, foram explicações de porque isso persiste.

Mas, antes, um problema recorrente nas discussões de economia e política: a confusão entre renda e riqueza. Renda é um fluxo. Renda é o que importa se você é um assalariado, se você discute a produção e o consumo de bens. Renda é a moeda na sua função de meio de troca. Economistas gostam muito de fluxos, funções compostas, modelos. Renda se aplica muito bem a isso.

Riqueza é outra coisa, é um fenômeno contábil. Riqueza é como seus ativos se convertem em patrimônio líquido. Riqueza é moeda como unidade de conta. Riqueza é o que permite a criação de moeda tal como funciona o sistema financeiro em nosso tempo, onde a garantia é a base do processo através do crédito bancário. Um dos problemas que se tem em economia é que, na fascinação desta com fluxos e produção, ela tende a desprezar os fenômenos de criação de riqueza que não envolvem a acumulação de renda.

O fundamental a se entender sobre juros (enquanto algo que é pago), por mais que muita gente rica se beneficie deles, é que eles são um fenômeno do campo da renda. Neste sentido, a passagem abaixo que está no documento do CEBRI capitaneado pelo Lara, cuja conclusão profunda estranheza causou a um amigo, formidável economista keynesiano de esquerda, procede:

“A alta de juros atua como inibidor das pressões de demanda, um efeito monetário contracionista, mas eleva o serviço da dívida e as despesas financeiras do governo, um efeito fiscal expansionista.”

Os juros altos que o governo paga são a renda de alguém. Quem? Qual o pacto social desses juros altos?

Para começar, pessoas da classe média alta. O proverbial dentista do Taleb em seu “Iludidos pelo acaso”, que no nosso caso sobrevive após aposentado com suas poupanças aplicadas em CDBs e fundos. Ou nossos fundos de pensão. Quão maior o juro real, menos será necessário acumular da renda prévia para garantir a renda futura. Mesmo sendo instituições com avantajados patrimônios, um fundo de pensão está sujeito à necessidade de produzir fluxos de caixa relacionados a essa necessidade de renda de seus beneficiários.

Um segundo conjunto de atores são as empresas que têm caixa. O CDI é um conforto para os gestores financeiros, para quem tendo caixa, mas incerteza quanto a investir, resolve esperar. Na situação de incerteza do Plano Real, fazer esse pacto com as empresas brasileiras acostumadas a não depender dos bancos para se financiar provavelmente foi um fator de estabilização, não só econômica quanto política.

Há um terceiro conjunto: o setor financeiro que opera carry trades. Investidores de fora e “por fora” que aplicam no mercado financeiro brasileiro, ganhando a diferença entre os juros baixos de lugares como o Japão e os juros altos brasileiros. Nossos bancos? Ficam com os ganhos de administrar esse negócio. Mexer nos juros acaba com parte do ganha-pão da Faria Lima.

Por paradoxal que seja, juros altos são péssimos para a formação de riqueza. Do ponto de vista material, riqueza é constituída por ativos construídos por investimentos: empresas, imóveis. Juros baixos aumentam o valor presente dos fluxos de renda desses ativos e, portanto, criam uma variação patrimonial decorrente da valorização desses ativos. A razão pela qual os juros foram praticamente zerados no restante do Mundo no momento da crise em 2008 foi exatamente para manter os preços dos ativos e garantir que as cadeias de garantias não colapsassem, levando a uma maciça destruição de moeda e patrimônio.

Sim, os juros foram zerados para salvar os ricos. E sim, isso causou todo tipo de bolhas, todo o tipo de vulnerabilidades, de fenômenos especulativos – mas não propriamente investimento. E causou uma cilada da qual não há como se sair hoje: qualquer aumento dos juros numa situação inflacionária produzida pelos choques que vieram com a Covid e a guerra leva a uma imediata destruição de ativos, da capacidade das pessoas no primeiro mundo pagarem prestações de novas hipotecas, de converter patrimônio em consumo pela via do endividamento de curto prazo. Qual seja: mexer nos juros causa dor, deal with it.

Nosso caso é distinto. E, sendo bastante cínico, o compromisso político do Governo Lula com os atores beneficiados pela política de juros altos deveria ser zero: tanto o grosso dos profissionais liberais quanto a Faria Lima votaram contra ele. O Banco Central é hoje uma instituição capturada pela Faria Lima, composta por pessoas da classe média alta. Esta segunda parte ele não deve deixar de ser, mas há que se lembrar que eles servem à República Federativa do Brasil e não ao “Mercado”.

E aí vamos para mais uma coisa que não pode ser dita de público, uma vaca que se supõe sagrada, mas algo que o Galbraith tocou no seminário: a conversibilidade da moeda. A dívida pública brasileira é interna, em moeda nacional. As reservas estão no Banco Central. Elas podem ser convertidas e remetidas para fora se o Banco Central se dispuser a tal. Uma fuga de capitais só acontece se o Banco Central permitir. Se ele fizer a cara de parede que fez quando deixou a empresa do ex-ministro Furlan (que, diga-se de passagem, estava presente no primeiro dia do seminário) quebrar por conta de uma desvalorização abrupta na crise de 2008, e deixar que a Faria Lima, seus clientes externos e os otários que prestaram hedge nessa brincadeira, sofram com o fato de que o dinheiro não sai, e o que sair será com significativo prejuízo, a imagem do Brasil pode ser “comprometida”, mas nossas contas públicas externas não serão. Neste sentido, há que se retornar à noção de “saquinho de maldades” que funcionou tão bem no ataque especulativo de 1997.

(E aqui cabe um pequeno desvio: Galbraith falou em como ele colocou os chineses em contato com as ideias de Bresser Pereira. Bresser e alguns desenvolvimentistas old school (como, por exemplo, nosso ex-diretor Maurício Borges) veem no câmbio apreciado uma significativa raiz de nossa desindustrialização. Usar dos juros para combater a inflação permitindo que o câmbio aprecie pela entrada de capital especulativo, e preços de tradables sejam forçados a uma redução interna, não é desaquecer a economia: é destruir capacidade produtiva, é manipular as ficções que regem preços regulados, como combustíveis, por exemplo.)

Com todos as complicações que isso aparentemente têm, a China mantém mecanismos de controle de capitais. Num momento em que teremos que caminhar para reconhecer que nossas posições de reservas deverão ser em yuans, porque é essa a moeda que nosso maior parceiro comercial virá crescentemente a utilizar em suas operações de comércio exterior, o alinhamento aos interesses do mercado financeiro atlântico me parece ser olhar para o passado.

Há um segundo ponto ainda sobre China que o Galbraith tocou: o quanto a valorização imobiliária foi um fator a permitir aos governos locais se financiar, o quanto o investimento público em infraestrutura levou a um investimento privado nesse setor que gerou riqueza. Se juntarmos essa observação com a preocupação federativa retratada pela Élida Graziane, e com a preocupação com um desenvolvimento que necessariamente resolva problemas sociais como colocou Guilherme Mello, temos uma boa diretriz quanto ao investimento em infraestrutura pública como eixo para uma retomada de crescimento.

Mas isso não é tão simples assim, até semana que vem.

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