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Os Rios Grandes do Clima, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco | Economista aposentado do BNDES

“…the sun’s zoomin’ in
Engines stop running, the wheat is growin’ thin”
(Joe Strummer)

Testemunho a dor de Docinho diante da tragédia que se anuncia nos informes da meteorologia, nas imagens de TikTok, Insta, Twitter, Youtube, TV ligada na Globo no almoço na casa da sogra, nas postagens de quem não entende o que está, de fato, acontecendo. Ser especialista (e a dissertação de mestrado de Docinho versou sobre desastres urbanos) implica em que “quanto mais você conhece um assunto, menos você consegue fazer caô a respeito” (Taleb, num tweet recente). Por vezes isso implica em, empaticamente, viver mentalmente o que se tornará trauma de tantos, a experiência do personagem trágico que conhece o destino e segue em frente, pois não há outro. A cada chuva forte no Rio que ela estudou ela sente essa dor, a dos patrimônios destruídos, das vidas antecipadas em sua resolução, dor como a de um cachorro sob fogos de artifício (embora com a moderação das emoções humanas).

No rádio de um táxi ouço o barítono calmo e viril do governador Leite. Há um realismo no que ele diz. Há lugares que não mais existirão. Há lugares que terão que ter uma transformação profunda. E cara, eu enfatizaria. No quarto de hora em que o táxi me permite/submete, não ouço o Leite tentando lacrar nada. Acho que a dimensão da tragédia, do fato que ele é um dos protagonistas da história (o que não quer dizer propriamente responsável, no sentido “portador de culpa”, mas certamente responsável no sentido “decisões cabem a ele”), é ficha que caiu totalmente.

Não há culpas claras na questão climática, não há pessoas a serem levadas à Corte Internacional de Justiça ou ao Tribunal Penal Internacional, como em alguns gravíssimos crimes em curso os quais essas cortes estão tratando, para desconforto da “ordem baseada em regras”. A metáfora de um meteoro, de algo que se resolve com uma missão, sequer é um bom ponto de partida. O mundo jurídico/político, especialmente o mundo liberal/ocidental, construído sobre o indivíduo, não foi construído para tratar de hiperobjetos (tentemos, talvez, a poesia). Sob a ordem neoliberal, menos ainda: esta é uma ordem construída para autonomizar a riqueza do controle do Estado Nacional, e de libertá-la das amarras da condição de Capital.

Se não há claros culpados a julgar, há ao menos coisas que se aproximam de soluções paliativas. Há uma política de redução de danos a ser feita. A palavra “resiliente” foi a mais marcantemente proferida pelo governador Leite durante a viagem de táxi. Resiliente, robusto: Taleb explica que elas não são o contrário do frágil, mas a imunidade à entropia em um determinado ponto da curva. Resiliente é a cidade capaz de sobreviver funcional a uma tempestade que em outro tempo e/ou espaço seria devastadora.

Um bom exemplo de como é isso: Nova Orleans foi arrasada pelo furacão Katrina em 2005. E com Nova Orleans, há quem dissesse que o governo Bush, com sua ação atrasada e incompetente (aliás, lembram do oxigênio no Amazonas? Mesmo assim Jair levou Manaus). Em 2021, bateu sobre a reconstruída Nova Orleans uma tempestade maior ainda: Ida. Dessa vez não houve tragédia: a cidade estava preparada. Só que os agentes responsáveis por isso, os engenheiros civis do Exército americano, haviam cometido uma fraude: eles superestimaram o tamanho do risco. Qual seja: o contrário do que se espera numa gestão pública responsável, que busca otimizar seus gastos de forma eficiente. A lição de Nova Orleans, creio, é de que um setor público com imaginação para se conceber como parte ativa desse mundo que opera sob novas e desconhecidas métricas (no dia que eu tiver um link para a discussão de Docinho sobre Ulrich Beck e seus conceitos de sociedade de risco e metamorfose do mundo, eu retomo esse tema).

Ao mesmo tempo que o céu desaba sob nosso não tão extremo Sul, o Mandato do Céu segue sendo (bem) exercido a plena carga. A ponto de que o Regime Biden anunciou uma série de tarifas buscando proteger a nascente indústria americana da pujança industrial chinesa. Eu me pergunto se levaram o velho Joe para ver Hamilton…

O Regime Biden começou sob a promessa de uma Bidenomics centrada num Green New Deal. Muita gente boa acreditou nisso. Para mostrar Joe como um moderado, usou-se ao invés Build Back Better (qualquer semelhança com Make America Great Again… Docinho me explica ainda que a expressão Build Back Better é, antes disso, um dos planos de ação necessário para redução de riscos de desastre. Qual seja: o que deverá ser feito no Rio Grande do Sul). Em 2022, reempacotou-se esse programa encalhado como Inflation Reduction Act. Reclamações à direita dos subsídios a carros elétricos, medo na Europa dos EUA se tornarem mais poderosos economicamente em função desses investimentos subsidiados, deixando a Europa para trás. E…

… essa semana o Regime Biden anunciou uma série de tarifas sobre carros elétricos chineses. Este post no x/twitter faz uma comparação entre a crítica do candidato Biden às medidas protecionistas anti-China de Trump e as medidas anunciadas esta semana. O teor das medidas desta semana com sua motivação:

I just imposed a series of tariffs on goods made in China:

25% on steel and aluminum,

50% on semiconductors,

100% on EVs,

And 50% on solar panels.

China is determined to dominate these industries.

I’m determined to ensure America leads the world in them.

Para quem ainda tem alguma ilusão romântica sobre Biden e seu governo, leia que para eles a liderança americana vem antes do clima. As medidas em si são ridículas, a começar porque, ao sul do Rio Grande, empresas automobilísticas chinesas já têm fábricas no México, lugar onde o loophole neoliberal chamado NAFTA opera o milagre de escapar das tarifas de importação para os EUA. Há uma ilusão de que os EUA conseguirão impor à China o tipo de contenção que impuseram ao Japão nos 80. Isso é uma tentativa de roubar uma pauta que é da direita nacionalista que apoia Trump. Mas é um faz de conta que precisa ser sustentado até a eleição, até que ao menos um dos dois atuais candidatos a presidente dos EUA venha a ser substituído.

Há um recente, sensato e razoável artigo do Dani Rodrik, alguns dias antes das medidas de Biden, defendendo subsídios de políticas industriais verdes. Se isso é uma prioridade global, medidas negativas como as que o governo americano tem crescentemente forçado, sejam tarifas, sejam boicotes, não contribuem para o enfretamento dessa questão principal. A visita de Xi a Orbano capeta iliberal cuja embaixada foi visitada pelo capeta Jair, cujo país vota sistematicamente junto com os EUA a favor de Israel (apesar de Orban ser o spalla do dogwhistle de antissemitismo que é culpar George Soros por tudo) – sinaliza que a China está mais preocupada com o que acontece sob o Céu do que com os valores da democracia e demais discurseiras dos regimes do Ocidente.

“Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma.” É hora do governo Lula olhar para o Céu e começar a acordar atentamente para isso.

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