Pular para o conteúdo Vá para o rodapé

Pequenas Lições de História, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“You were initially trained in history, as far as I know?”
(Putin)

Sete da noite, pela janela olho o trânsito no Flamengo parado, uma fresta para um zig-zague de alguma autoridade vinda do Aterro chegar… não faço ideia. Conforme prometido, começo estes paralisados dias de G20 pela Entrevista do Vladimir Putin (ou, se preferir, numa versão com dublagem em português). Longa, começa com uma lição de história para explicar por quais razões a Rússia começou sua Operação Militar Especial em favor das repúblicas separatistas da Ucrânia. Fico me perguntando se essa longa parte não foi uma trollagem com os americanos, povo longamente reconhecido como ignorante em geografia e história. E depois segue, mostrando ao mundo uma coisa que parece ser rara nos dias de hoje: um governante capaz de falar de forma articulada, complexa, capaz de pensar sem ser sob forma de clichê preparado pelo pessoal de relações públicas.

A BBC fez uma risível checagem histórica do que Putin falou. Eu diria que é um fantástico exemplo do que uma instituição pública a serviço de seu governo é capaz de fazer. O seu ex-patrão, o ex-primeiro-ministro Boris Johnson, teria aceitado fazer uma contra entrevista para o mesmo Tucker Carlson… e desistiu. Desmentiu que pediu um milhão em dólares, ouro ou bitcoin. Depois, bem, esse dinheiro seria para caridade… Mas por conta da morte do Navalny, mais um racista desprezível transformado em herói pelo Ocidente, ele cancelou. Vai que o Tucker fazia uma de perguntar sobre o envolvimento MI-6 (o lugar onde trabalha James Bond), que, segundo Gilbert Doctorow, um cara não propriamente propenso a teorias de conspiração, foi quem eliminou Navalny. O fato é que o ciclo de notícias sobre Navalny nos EUA foi atrapalhado pela direita MAGA e adjacências relembrando a morte de Gonzalo Lira, um cidadão americano morto numa prisão ucraniana.

Uma boa discussão sobre a entrevista é esta do Craig Murray. Ele revisita a história (este artigo do William Schryver também revisita a história de forma sintética e complementar), coloca uns exemplos contemporâneos de identidades nacionais artificialmente construídas (e que mesmo assim funcionam), e esclarece que, por mais que hoje ele se veja sem seu legalismo inocente de dois anos atrás (qual seja, que a guerra seja justa sob o ponto de vista de ter se evitado uma limpeza étnica no Donbas), a intervenção russa é ilegal (como foram as ações do Ocidente na Sérvia, na Líbia e em Serra Leoa justificadas pelo mesmo princípio de right to protect)

Mas um outro artigo sobre a entrevista é por demais interessante, cara leitora. O Raw Egg Nationalist, uma das figuras centrais do que é a edge do pensamento de direita contemporâneo, escreveu sobre a entrevista um belo artigo que, na falta de melhor palavra, chamaria de filosófico. Um ângulo de Fukuyama que poucos pegam, o Nietzche ao final do livro, somado a um pouco de uma análise de Dugin; o horror de ver que o mundo liberal produziu um vazio de vontade e intelecto, um país nominalmente sob a condução de Biden; e que de outro lado há Putin, há história e o respeito a ela.

O ponto central, para quem quiser perceber, é que a entrevista mostrou a superficialidade e a ignorância no topo desta ilusão que é a estrutura de poder do Ocidente. Como não sou um aceleracionista de AQUARIUS, isso me preocupa muito.

Tucker, de voz própria, acha o discurso econômico libertário uma picaretagem. Mas, ao mesmo tempo, ele entrevistou, todo empolgadinho, Milei e Bolsonaro. Talvez uma entrevista com O Cara fizesse bem a ele. Após Putin, cairia muito bem.

O Cara sabe que é o herdeiro de Nelson Mandela. O Cara sabe que ele é talvez o político mais popular do mundo, como falou lá atrás o cara que todo mundo achava o político mais popular do mundo, Barack Hussein, o 44. O Cara, cabra curtido pelo tempo em suas quase oito décadas, sabe o timing das coisas. E se a África do Sul fez a gentileza para os BRICS e para o Mundo de partir na frente na abertura do processo contra Israel, esperar um tempo pequeno e sair atrás é a estratégia que se espera de um cara que não é propriamente um first mover, mas um sagaz fast second, falando numa linguagem de estratégia que um cara da Faria Lima possa entender.

A forma como os brasileiros responderam ao ataques de Israel ao Cara também foi exemplar: um vampetaço! Trollar com uma foto histórica do grande Vampeta é uma forma de humor sem cortes (uncut, em inglês) cuja dimensão o pessoal do Netanyahu, que tanto conversou com Eduardo, seu pai e seus irmãos, desconhece.

Mas eu acho que O Cara cometeu um pequeno erro de história. O genocídio em curso em Gaza é muito mais próximo do que os alemães fizeram no Leste como um todo do que a decisão da “solução final”. Há quem diga 1,9 milhão de poloneses não judeus, há quem diga 3 milhões. Há uma conta de mais de 10 milhões de eslavos mortos. Mas isso, bem como os ciganos, não passa nos filmes de Hollywood. Os eslavos tinham o péssimo defeito de serem nações do outro lado da Cortina de Ferro.

O que torna a Solução Final algo atípico? Ela foi uma versão ampliada do genocídio armênio, uma forma perversa de processo logístico-industrial. Ela é uma brutalidade de um tipo raro (como Ruanda, por exemplo, para os que acham que nada aconteceu de lá para cá). Mas genocídio não se resume a isso. O genocídio dos índios americanos, os massacres praticados pelos alemães na Polônia e na URSS na segunda guerra, só para usar de dois exemplos bem conhecidos, são formas genocidas de limpeza étnica, de remoção de uma população que lá está para que outra venha a substitui-la. Essa população é posta a correr, morre boa parte no meio do caminho. Se dilui, deixa de ser nação. Curiosamente, “solução final” foi o encerramento de um discurso na terça da embaixadora negra dos EUA na ONU. Terá sido um ato falho freudiano? Terá sido uma forma sub-reptícia dela dizer “prestem atenção no que não posso dizer”? Terá sido mera estupidez? Para as pessoas com um pingo de conhecimento de história aquilo soou desagradável, como para mim foi desagradável ouvir um determinado quarteto de Haydn num concerto no BNDES em um 20 de abril (esse easter egg fica para você descobrir, leitora, e me dizer se acha que foi estupidez ou provocação).

O fato é que, dos 15 membros do Conselho de Segurança, só os americanos votaram contra uma resolução pela exigência de um cessar fogo. Os ingleses se abstiveram, e os outro 13 (malditos petistas!) membros votaram pela resolução apresentada pela Argélia. Eu acho que boas relações com o lugar onde fica a Disney pode ser legal para muitas pessoas. Mas tendo em vista nossos parceiros de negócios enquanto país, o silêncio nesse caso não me parece ser boa política.

Se Alemanha e Reino Unido trilham na recessão ajudados pela guerra na Ucrânia, o caso de Israel é bem mais grave: a economia contraiu 20% no último quarto. Se você tem uma economia “pós-industrial”, de “serviços de alta tecnologia” e baboseiras do gênero, você depende do mundo funcionando em plena ordem para que seu faturamento e sua riqueza existam. Israel era entendido como um lugar assim. Só que a guerra acabou com isso. Não dá para ser Singapura e ter, em paralelo, os custos e consequências políticas de um estado colonial, de um fascismo primitivo de terra e sangue. Nesse sentido, o projeto sionista, com o fetichismo do kibutz, com a realidade perversa dos colonos, é uma âncora levando ao fundo a fabulosa possibilidade de modernidade que Israel possui.

Pequena digressão: por que todo discurso de gente velha de “esquerda” pró-Israel toca em kibutz, em alguma experiência pessoal passada num kibutz? Os kibutzim não passam hoje de 125 mil, e estamos falando de moradores, não “praticantes”. Essas pessoas não sabem que há mais de 700 mil colonos na Cisjordânia, e que eles têm até uma ministra dos assentamentos?

Mas voltando ao início, a Putin e à Ucrânia: a debacle ucraniana no que parecia ser sua fortaleza inexpugnável – Avdeevka – no fim de semana passado, foi o momento em que ficou transparente que o projeto militar do Ocidente fracassou. Há quem tenha ilusão de uma escalada, de umas linhas vermelhas transpostas. Se rolar, não vai dar em nada. A alternativa maior de escalada, “tropas de paz” da OTAN, claramente seria pulverizada pelos russos. Se rolar, a desmoralização do Ocidente será devastadora. O Ocidente não tem mais como executar este tipo de “Missão”, independente de todo propósito público que a torne necessária. Essa desindustrialização só se resolveria com um choque que vai além da “Missão”.

Falando em choque, sendo breve, Bukele. Bukele foi reeleito de forma esmagadora em El Salvador. Acho que as pessoas ainda não entenderam quem é Bukele: ele é Stalin. Ele é o estalinismo do projeto libertário. Assim como Stalin viu nos Kulaks um formato quase burguês de inimigo de classe de uma ditadura do proletariado voltada para as cidades, para o setor industrial, Bukele sabiamente identificou nas gangues o protoestado paralelo que elas são. Como libertário, o Estado é o inimigo, e os estados privados do lumpemproletariado organizado, um estado para lá de fora do tolerável mínimo. A política burguesa sempre instrumentalizou o lumpem. O problema é que quando este se articula em crime organizado, em hierarquias paralelas, a política burguesa só conhece o caminho da incorporação pela via do deep state. A experiência de Bukele é algo novo, um em lugar nenhum, mas ainda assim neste hemisfério. Não creio que seja um caminho para o desenvolvimento, mas há o grave risco de ser um caminho para uma vida melhor. E isso tem voto.

Associação dos
Funcionários do BNDES

Av. República do Chile, 100 – Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20031-170

E-mail: afbndes@afbndes.org.br | Telefone: 0800 232 6337

Av. República do Chile 100, subsolo 1, Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20031-917
E-mail: afbndes@afbndes.org.br
Telefone: 0800 232 6337

© 2024. Todos os direitos reservados. Desenvolvido por: AFBNDES

×