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Percepção: a maturidade em favor da vida

Celso Evaristo – Empregado do BNDES; diretor institucional da AFBNDES

Vínculo 1358 – A percepção é o processo por meio do qual uma pessoa seleciona, organiza e interpreta as informações recebidas para criar uma imagem significativa do mundo.

A consciência cognitiva do sujeito concreto – individual e/ou coletivo – está perpassada por fatores biológicos, culturais, histórico-sociais e de natureza emocional; e é nessa consciência mesclada de elementos de origem variada que ocorre o fenômeno perceptivo.

A impressão que temos do mundo exterior e de tudo o que nele acontece é por nós internalizada após complexo processo de mediação composto pelos fatores acima citados. Cada um de nós tem seus próprios filtros, o que faz da nossa leitura da realidade algo único, intransferível.

No entanto, por pertencermos a determinados grupos, comunidade, classe social, estamos compelidos (tenhamos consciência disso ou não) a compartilhar valores comuns com os demais membros de tais coletividades. Esses valores transformam a singularidade perceptiva de cada um de nós em algo cujo conteúdo mantém o mínimo de correspondência com a percepção coletiva. Em outras palavras: o todo influencia suas partes constitutivas, deixando marcas, sem anular o que nelas é específico: João é um tecnocrata, embora nem todo tecnocrata seja o João.

O ato de conhecer a realidade traz sempre embutido o efeito da percepção, ou seja: a síntese intuitiva de traços observados de qualquer fenômeno a partir dos filtros idiossincráticos do observador. A conclusão inevitável é que a utilização eficaz de nosso arsenal de conceitos e ideias na lida diária depende, em grande medida, de uma boa percepção da realidade que nos cerca. Percepções ruins levam a respostas inadequadas aos desafios do mundo ao nosso redor. No campo profissional, a tentativa de aplicar conceitos técnicos a realidades mal compreendidas resulta apenas em narcisismo pedante, em historinhas adornadas com aparência de linguagem intelectualmente sofisticada. Na avaliação resultante, os traços percebidos são deformados por categorias impróprias e a confusão pode chegar a tal ponto que o trabalho mental se torna esforço perdido.

O mecanismo perceptivo está sempre marcado pela distorção perceptiva, cuja tendência é transformar a informação captada em significados pessoais e interpretá-la de maneira que se adapte ao nosso modelo mental. Se tal distorção é inevitável, como minimizarmos seus efeitos negativos?

Em outras palavras: para conhecer e transformar a realidade com algum grau de sucesso, precisamos, antes de mais nada, aprimorar nossa percepção. Mas de que forma podermos fazê-lo?

Os livros de autoajuda ajudam pouco na empreitada: são prescritivos e reducionistas demais. A jornada é longa e difícil; requer esforço de aprendizado formal, prático e emocional. Leitura, vivências, autoanálise são indispensáveis, mas insuficientes se desprovidas da reflexão crítica necessária do processo de análise do objeto de nosso interesse e sobre a importância a ele dada por nós. Se devemos suspeitar de nossas próprias certezas, que dirá das ideias já prontas e acabadas que nos são inculcadas ininterruptamente a cada dia!?

O filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) criou a expressão “mestres da suspeita” para designar os pensadores Karl Marx (1818-1883), Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Sigmund Freud (1856-1939). Segundo Ricoeur, foram esses três pensadores que ‘suspeitaram’ das ilusões da consciência, tanto no plano individual quanto no coletivo. Por consequência, para desvelar a verdade, é preciso proceder à interpretação crítica do que julgamos conhecer a fim de decifrar o sentido oculto na aparência das coisas, das pessoas, dos acontecimentos – em suma: precisamos sempre aprimorar nosso aparelho mental perceptivo.

Por isso, todo fundamentalismo, seja ele religioso, político, ideológico, pela ausência do senso crítico, é tão nefasto ao discernimento do mundo real. O lugar-comum, o aceito como trivial, é passível, com frequência, de nos arrastar para o mundo da fantasia, no pior sentido deste termo. Nas sociedades de massa a engenharia social longe de ser exceção é a regra. É preciso ouvir a exclamação do psicólogo Wilhelm Reich (1897-1957): “não, as massas não foram só enganadas, em determinada medida, elas efetivamente desejaram o fascismo!”.

A percepção pobre é a que tem poucas ligações com o ambiente externo a si, e as poucas que possui com o real são rotineiras e não criativas. A vida reacionária é a que tem mais ligações com o passado do que com o futuro; ela se liga a uma realidade que não existe ou deixou de existir, ou que só existe na sua cabeça: suas reações se processam em relação a fantasias e ilusões; o perigo provém de seus próprios medos, seus dogmas são projeções das próprias inseguranças íntimas.

O dramático do momento histórico pelo qual passamos é o do empreendimento negacionista de todo conhecimento alcançado pela humanidade, negação da ciência, de todas as conquistas da civilização e da cidadania: “a Terra é plana”; “vacina mata”; “o aquecimento global é um mito”; “fumar não faz mal”; “qualquer tipo de política pública e amparo social gera dependência”; “homossexualismo é doença”; “o ensino doméstico é melhor do que o ensino escolar”; empresas estatais são intrinsecamente ineficientes e não éticas” etc. etc. etc…

O que a princípio pode parecer motivo para riso e/ou indiferença requer de nós profunda reflexão. Estará nosso futuro inteiramente hipotecado a determinadas matrizes ideológicas de grupos perpetuadores de imaturidades, os quais promovem o individualismo mais narcísico possível como resposta a demandas coletivas, que pregam o amor universal, mas praticam a intolerância com os diferentes, que enxergam o meio ambiente como obstáculo ao desenvolvimento em vez de requisito essencial para obtê-lo?

Se nossas atitudes e desempenho são pautados por percepções mal formadas em relação à vida, o posicionamento ante os diver-sos aspectos da existência estará alinhado com formas imaturas de reagir aos desafios de toda ordem. Não há receitinha de bolo. Não há solução mágica. Não podemos procrastinar. Estamos todos convidados a nos empenharmos na luta contra a onda obscurantista global, que, no Brasil, assume ares de “tragédia-bufa”.

A maturidade mental e a percepção lapidada são duas faces da mesma moeda. Trabalhar para o aprimoramento de ambas é o que o tempo presente exige de nós. Isto é o que pode ser ainda a nossa salvação da barbárie.

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