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Possuídos pelo impasse, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“Voz do lago: um exemplo de derrota?
Yudhishthira: Vitória”
(Jean-Claude Carriere, O Mahabharata)

VÍNCULO 1622 – Quem olhar apressadamente para o resultado das eleições europeias da semana passada vai ter a impressão de que houve uma grande vitória da esquerda, e de que as extremas direitas xenófobas foram devidamente derrotadas. Silêncio sepulcral em Camboriú.

O que aconteceu foi um pouco mais complicado que isso. E é um pouco desse rolo que pretendo tecer aqui, um pouco de como leio esses eventos quase simultâneos, tão estranhamente coincidentes.

Mas antes, uma pequena digressão sobre sistemas de voto distrital com voto facultativo. Basicamente, seu voto não segue propriamente sua posição política dentro das “ofertas” disponíveis, mas tende a ir para a melhor (ou a menos pior) das candidaturas dentre aquelas que você vê como viável de ser eleita. Digo “tende” porque você pode ser daquelas pessoas para os quais a afirmação de seus princípios tem mais importância do que eleger alguém que melhor atenda o que você quer daquele governante/representante. E se você, definitivamente, não odeia ou nem gosta de ninguém que possa ser eleito, você simplesmente não vai votar. A eleição americana e inglesa é voto distrital puro, vence quem teve mais votos, não importa quantos.

A França fez um aperfeiçoamento nesse processo de forma a garantir que a pessoa eleita tenha, de alguma forma, uma maioria (ou perto de uma maioria): eleição em dois turnos. Para deputado, isso quer dizer que, se ninguém for eleito no primeiro turno com mais de metade dos votos num distrito onde mais de metade dos eleitores inscritos votou, aqueles que tiveram mais de 12,5% dos votos concorrem no segundo turno (raramente mais do que três). Para presidente é mais simples: se ninguém ganhar no primeiro turno, concorrem só os dois mais votados no segundo.

O voto estratégico é uma realidade comum nesses sistemas. Se o candidato do meu partido não tem chances de ganhar ou de se qualificar para o segundo turno, voto noutro que eu não ache tão ruim assim, mas que tenha chance. Por vezes, partidos que sabem ter pouca presença numa determinada circunscrição sequer apresentam candidato, ou, quando apresentam, não investem na campanha. Portanto, esse é um cuidado quando se for ver a votação total. Ela não representa como as preferências se distribuem na população, mas como se somam às pequenas idiossincrasias locais, as estratégias nacionais, como a configuração da competição tornou aquela disputa em algo próximo de dois disputando a vaga.

A eleição para o Senado no Brasil é como o caso americano/inglês. A eleição para o Executivo, uma imitação do sistema francês. Diferente de lá, aqui o voto é obrigatório.

Pequena observação: há links para artigos contendo um monte de gráficos bacanas, meticulosamente feitos por respeitáveis órgãos de imprensa, ao longo do artigo. Cliquem!

Reino Unido:

A previsão inicial de que haveria uma vitória esmagadora do Labour se verificou. Para os preocupados com a ameaça da extrema-direita global, as aparentemente pífias cinco cadeiras (em 650!) do Reform Party, nova encarnação do partido anti-imigração em torno da figura caricata de Nigel Farage, parece ser um sucesso adicional.

Olhando os detalhes, no entanto, a situação é, na falta de melhor palavra, esquisita. Para começar, foi a segunda maior abstenção (em termos de percentual de eleitorado) de 1924 para cá (há uns gráficos muito bons neste link).  Os trabalhistas tiveram um pequeno crescimento em relação à última eleição (pouco mais de 1,5% do eleitorado). Concretamente, no entanto, sua votação encolheu! Qual seja: o desempenho em votos do Labour com a liderança antissistema de Jeremy Corbyn foi melhor do que sob Sir Starmer.

Parte dessa diferença, creio, está na votação dos Verdes. Durante o par de eleições de Corbyn eles encolheram, em parte de forma voluntária. Agora eles disputaram praticamente em toda Inglaterra e País de Gales, tendo 6,4% dos votos, mais que o dobro das duas eleições anteriores. Mas outra parte dessa perda de votos também está em candidatos independentes que concorreram contra o silêncio/apoio do Labour ao genocídio em Gaza. Além de Corbyn, excluído do partido, quatro outros independentes foram eleitos, um deles derrotando um potencial ministro de Starmer (para ser ministro na Inglaterra você necessariamente tem que ser parlamentar eleito ou membro da Casa dos Lordes). Os muçulmanos ingleses, historicamente, pendiam significativamente para os trabalhistas. Um dado curioso é que gradualmente o Labour vem ganhando votos nas áreas mais ricas e perdendo participação nas áreas mais pobres. Nisto ele se aproxima, por exemplo, dos democratas nos EUA.

A catástrofe que se abateu sobre os Conservadores, que já governavam por catorze anos, essa foi apocalíptica. Passaram de uma confortável maioria (365 em 650) para uma desconfortável minoria de 121 parlamentares. Em termos de percentual do eleitorado, foi o mais baixo que os tories tiveram nos últimos 100 anos. Liz Truss, a breve, aquela cujo governo durou menos que um alface, conseguiu uma façanha, jamais realizada por outro primeiro-ministro: a de não ser reeleita na eleição seguinte. Talvez agora ela tenha tempo, quem sabe, para estudar geografia. Talvez o melhor indicador de como essa eleição foi uma rejeição ao Partido Conservador tenha sido o resultado do Lib-Dem. Embora com pouco mais de metade dos votos que eles tiveram em 2010, quando chegaram a ter 23% do eleitorado, elegendo 57 parlamentares, dessa vez eles elegeram 72! Isso é um sintoma do voto estratégico contra os tories.

Mas não só o voto estratégico derrubou os conservadores. O Reform Party, com 14,3% dos votos, sinaliza que a conta da traição feita pelas elites dos conservadores ao mandato recebido com o plebiscito de Brexit foi cobrada agora. Não pense que uma votação como o Brexit era mera xenofobia, nostalgia imperial ou mero desejo de sair da Europa. O Brexit foi um grito de revolta, um veto a um governo da City, pela City, para a City. O Brexit foi uma revolta do que não era Londres (ou Escócia separatista, querendo um Europa crescentemente federativa) contra essa hegemonia. E agora, depois de oito tentativas, Farage chega ao Parlamento. As meras cinco cadeiras que eles conquistaram dos tories estão longe de representar os 14,3% dos votos que tiveram, votos que certamente não foram beneficiados por voto estratégico.

A outra grande debacle foi a do Partido Nacional Escocês (SNP). Saíram de 48 cadeiras para apenas 9. Num certo sentido, a missão de Nicola Sturgeon de substituir a pauta de independência escocesa por uma versão local extremista da pauta dos democratas da Costa Oeste foi muito bem sucedida: o Labour restaurou seu domínio sobre a Escócia, o partido separatista foi trucidado.

Qual o mandato que o Labour, de fato, tem? Pouco, muito pouco. Eles estão lá por um ódio aos tories tão grande que foi capaz de gerar uma alternativa à direita. Eles estão lá com uma rebelião começando a se gestar, potenciais “coletes amarelos” contra as medidas climáticas, por exemplo. Uma coisa legal sobre esse governo do Labour, no entanto, é que racionalizou-se uma etapa importante da formulação da política pública: onde antes sindicalistas e ativistas ocupavam a política, trazendo suas toscas demandas de eleitores para o civil service e os consultores embromarem, agora há dezenas de lobistas diretamente como parlamentares, o que vai certamente permitir uma gestão mais ágil e profissional.

E nesse tamanho acabaria um artigo normal. Só que esse é uma versão estendida, perdoem meu desclassificado francês, mas a eleição do outro lado do Canal foi também uma folie.

França:

A esquerda venceu na França! A extrema-direita foi derrotada!

Não, essa pontuação está errada. Acho que é assim:

A esquerda venceu na França? A extrema-direita foi derrotada?

E as minhas respostas são: não e por enquanto.

Mas antes vamos pensar quais “virtudes” um sistema de eleição parlamentar em distritos uninominais em dois turnos teria. Em primeiro lugar, ele não amarraria a representação como um sistema tipo o inglês/americano, que basicamente acaba conduzindo a um bipartidarismo (a lei de Duverger, estado da arte teórico quando veio a quinta república na França). Mas ele produziria uma disputa menos confusa do que a representação proporcional pura. Menos partidos, mais clareza de coalizões, maioria mais fácil de se produzir um governo. Mas tem um outro “benefício”: se você supõe que o eleitor vai buscar no segundo turno a opção política mais próxima, esse sistema teria a virtude de excluir os extremos políticos. Na época isso possivelmente contribuía para se evitar o comunismo. Mas o inimigo agora é outro.

Houve duas grandes surpresas no primeiro turno. A primeira surpresa em si foi a rápida formação de uma coalizão de partidos de esquerda bastante diferentes entre si. A Nova Frente Popular, talvez esquecendo o objetivo naquele tempo “de encontrar novamente o espírito da revolução e não de fazer o seu espectro caminhar outra vez.”, vestindo nos nossos tempos do cosplay a roupagem dos anos 30. Essa inesperada coalizão (que na verdade foi praticamente uma reedição da coalizão de 2022, a NUPES), surgida logo que foi convocada a eleição, teve pouco mais de 28% dos votos no primeiro turno, chegando em segundo. Em primeiro, chegou a Reunião Nacional, que juntando a um partido aliado de extrema-direita teve pouco mais de 33% dos votos. Um candidato do bloco da Reunião Nacional foi o mais votado em 297 dos 577 distritos. E antes que você, leitora, queira fazer uma comparação horrorizada como se fosse a Inglaterra, o voto estratégico não segue a mesma dinâmica que no sistema inglês. Um jogo tem suas regras, e uma mudança de regras altera como você opera dentro dele. Essas vitórias provisórias da extrema-direita não teriam acontecido numa competição no sistema inglês. Mas elas dão uma boa proporção de como a Reunião Nacional representa o maior conjunto de eleitores praticamente em cada canto da França.

O centro foi batido, tal como aqui. Mas aí opera-se o milagre do combate ao inaceitável. Na semana entre o primeiro turno e o segundo turnos, os candidatos que chegaram em terceiro, tanto da esquerda quanto do partido de Macron, renunciaram para fazer com que o que estivesse em segundo pudesse bater o candidato da Reunião Nacional no distrito. E batidos foram esses candidatos da extrema-direita: apenas 143 eleitos (menos de metade dos distritos onde lideraram), contra 182 da Nova Frente Nacional e 168 da coalizão de Macron. Em termos de votos, a extrema-direita cresceu para 37% no segundo turno, indiscutivelmente a maior força política na França (não tão longe de ser majoritária, não menos odiada por conta disso). Mas o milagre de fazer o eleitorado de esquerda votar nos candidatos do detestado Macron funcionou. Mas o milagre principal aconteceu dentro da coalizão vencedora: os socialistas, que tinham 26 deputados em 22, poderão ter 65 agora.

Concretamente, a hipótese de uma traição à direita na Frente – com um novo governo onde o PS, Macron e tudo que estiver entre eles e ao extrema-direita se junta – não deve ser descartada. Não acredito que Mélenchon e sua França Insubmissa venham a liderar o governo.

Quem quer que venha a governar França e Reino Unido será obrigado (talvez não de imediato, mas em muito breve) a um regime de austeridade. Serão arrastados no turbilhão da hegemonia americana afundando. Falando nisso, entre hoje e um artigo na próxima quinta, há um grande evento para acontecer: a Convenção Republicana, de segunda a quinta. Trump anunciará o vice na segunda. Esse momento em que a convenção estiver acontecendo, em que todo mundo estará tentando extrair a interpretação mais cretina possível das declarações de Trump (coisa para a qual ele fornece farto material de fácil trabalho), é perfeito para fazer alguma bobagem longe dos olhos facilmente distraídos da imprensa. Grande momento, por exemplo, para Israel cometer o erro de invadir o Líbano. Não espere uma evolução do drama de substituição de Biden, que é a novela política que logo começará – a ser concluída na penúltima semana de agosto em Chicago.

Tudo pode acontecer. Mas em se tratando de tradições políticas americanas, não descarte que as cartas no envelope de Detetive serão: o Ucraniano, com o Javelin, na Convenção.

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