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Restauração no Fim da História

Paulo Moreira Franco – Aposentado do BNDES

Contemplo a maravilha
A doce madrugada de Sodoma
Que os índios vão tomar à mão armada
Aos uivos e vagidos
Por raiva e desafio
Ao berço e à dinastia
 (Tite de Lemos – Sueli Costa)

Vínculo 1429 – Uma reunião, mais de duas dezenas de pessoas. Aquele que me parecia ser o esquerdista consciente oficial do local revolta-se contra o processo de proletarização que estaria acontecendo com “nós”, ali, funcionários do Banco. Um cara bacana, um cara realmente profissional e com bons argumentos. Mas internamente a pergunta: “será que esse cara tem consciência de sua consciência de classe?”.

Vivemos o mais estranho dos tempos – e não falo da Covid.

Vivemos numa época de transição entre algo que se chamou capitalismo e algo que ainda não sabemos o que é – que sequer ainda tem nome. Os sintomas disso estão, por exemplo, na eleição americana recém-acontecida: de um lado o trambiqueiro Trump, que capturou a imaginação e a revolta de uma burguesia de base local, pessoas donas de seus próprios negócios submetidos à concorrência devastadora das plataformas e do Walmart, base que é majoritariamente do Partido Republicano, mas sempre massa de manobra do grande capital, junto com as pessoas crédulas dos valores ditos “tradicionais”; do outro, um borg de aparato intelectual, capital financeiro, meios de comunicação, piagnoni de causas identitárias liberais e plataformas. Gente do Partido Interno como a gente: melhores escolas, melhores da turma, melhores práticas, melhores salários, melhores bairros das melhores cidades, de um mundo onde melhor=mérito.

Há uma luta de classes acontecendo. 

Entendê-la obriga a olhar para hoje, sonhar acordado o pesadelo futuro. 

Renda Básica Universal associada a um Sistema de Crédito Social é o meu pesadelo. Nada tenho contra a primeira desde que você tenha um país que basicamente produz os bens-salário que consome. Se eles dependem do trabalho de outro país, de alguma forma há colonialismo (termo que uso aqui com muita liberalidade): seja você a terra dos poços e plantations, seja você a terra dos dólares e dos drones

A segunda parte da equação é o estado policial gentil do nudge (cuja versão mais sofisticada é o sistema de crédito social chinês). A instrumentalização de nossas ciladas mentais para nos levar ao “bom caminho” (que por vezes é até o bom caminho). Qual o problema nisso? Para começar, criar a ilusão de culpa nas pessoas de que sua vida depende do seu mérito e de suas ações – e não de sorte e da estrutura da própria sociedade. 

Como vocês dos quais eu já fiz parte se encaixam nessa história – e como isto se conecta com nosso simpático colega crítico da proletarização? 

Professional-Managerial Class – basicamente gente com credenciamento de nível superior – é um conceito interessante, mas um conceito que a meu ver tem o mesmo problema de chamar de burguesia toda a Paris que se insurgia contra os Luíses. Há os Bulshit Jobs do mundo administrativo-jurídico-financeiro-gerencial, vulgo nós. Há o trabalho intelectual de cientistas, programadores, artistas – aqueles que McKenzie Wark chamou de hacker class, mas serve de justificativa para o pacote todo da PMC contido no termo Classe Criativa do Richard Florida. E tem um terceiro componente, que são professores, enfermeiros, médicos, pessoas que explicaria como as pessoas que fazem um trabalho que outrora era feito por amigos, parentes e criados no âmbito doméstico, e por instituições religiosas no âmbito público. Todos diplomados, todos credenciados, mas rendas e carreiras distintas. 

Quando alguém reclama da “proletarização”, basicamente está verbalizando que o seu credenciamento lhe dá o direito a uma espécie de prisão especial trabalhista. Qual seja: não estou sujeito ao tipo de subordinação que um mero provedor de trabalho/recebedor de salário está. Seja o médico sujeito às regras e medidas de performance de um plano de saúde – com um rendimento limitado –, seja um burocrata sujeito à violação da autonomia de seus princípios técnicos. Os professores? Esses já estão ferrados faz tempo. 

A ideologia impõe duas cegueiras a este fragmento da PMC que somos nós. A primeira delas é não entender onde nossos interesses e solidariedade de classe se encontram com os de outros membros dessa elite que controla o sistema com o mesmo discurso técnico que compartilhamos como justificativa. Fazemos isso de forma inocente, imaculada. A segunda: nós somos servidores públicos concursados. Realizar nosso trabalho em função de nossa qualificação técnica à revelia do que é o mandato político à que devemos obedecer não é um ato de resistência ou um ato de luta de classes: é uma traição do interesse público em favor de nosso interesse privado (e das pessoas de nosso lado da cerca). 

Tenhamos consciência disso quando necessário. Escapar para o manejo da ética(eta) vigente nestes anos recentes é a forma canalha do neoliberalismo desviar atenção, de sermos predadores camaradas. #oleopardo #tudo #mude #continue #omesmo, agora com determinadas diversidades contempladas (e sintomaticamente classe e região, recortes do exercício concreto da hierarquia e da política, banidos ou esquecidos). O ideal propagado é uma sociedade redimida onde índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes exercem seus podres poderes

Mas o fato de que estamos sob o pior governo de nossa história – que viola o senso de dever técnico-moral de qualquer pessoa realmente qualificada e digna – torna isso realmente complicado. Mas temos que prestar atenção que foram exatamente dois atos de extrapolar o seu mandato por um par de burocracias públicas que nos levaram a essa situação. Primeiro, os procuradores que conduziram o que se vislumbra como a maior violação de leis que esse pais já conheceu, a Lava Jato (a lei não se faz de “justiça”, a lei se faz com regras e procedimentos). Depois, o Exército que se esforçou para fazer de um dos seus presidente pela via eleitoral, e que pela quantidade de pessoas da instituição no Governo, é corresponsável pela desgraça que atravessamos. E há o Bando que Tomou o Governo – as pessoas do mercado, pelo mercado, para o mercado, que estão com Guedes. Essas também são pessoas credenciadas, aceitas nos cânones do discurso econômico deste país. Algumas pessoas que estão lá desde o governo golpista de Temer. 

Na tempestade que se avizinha, quando a ‘saddamnização’ do personagem que encena a presidência (fosse eu chargista, todas as minhas charges de Bolsonaro teriam uns barbantes, como sendo uma marionete, sendo um deles caído no chão, tipo apenas um dos cabos tivesse partido) é um dos cenários que pode vir a afetar negativamente o país, há que se tomar cuidado sobre a seletividade de onde as críticas se colocam, quais instrumentos são utilizados. Censuras como as que estão sendo implementadas pelas plataformas nos EUA, por exemplo, são inadmissíveis. “Eu dou ao diabo o benefício da lei…” (o que quer dizer que os crimes de Olavo contra a filosofia escapam, os contra a honra de Caetano, não… e que nossa colega possa torrar quanto dinheiro quiser na sua fé em Allan dos Santos sem ser submetida a dificuldades e constrangimentos para fazê-lo.) 

Mas parte do cancelamento que poderemos ter tem origens plenamente justificáveis. Um agronegócio que não leu Equador; a parte de bolsonaristas que não são Bolsonaristas da Turma do Guedes, que passou dois anos hostilizando a China (e aí se incluem os filhos, Udal, Carlos e Eduardo, os quais não dá para se demitir); uns militares que sequer conduzir algum tipo de restrição ao movimento a sério, de forma a achatar a curva da pandemia, foram capazes de fazer, tornando-nos um dos focos globais da Covid e alvo do ridículo mundial: tudo isso são razões de sobra. Razões para restrição aos voos. Razões para boicote à soja, ao ferro, ao petróleo. Vocês estão sabendo dos boicotes que a China fez à Austrália por conta de 5G e da empolgação deste membro dos Five Eyes na contenção estratégica de seu mais central parceiro comercial?

Já a lógica financista dos Bolsonaristas da Turma do Guedes, essa explica outros cancelamentos. O dos investimentos. O dos empregos de carteira assinada.

Mas também explica porque os militares têm sido tão incompetentes em executar o que é seu papel na paz: agir em emergências. Se o que era Tesouro (Fazenda) e o que era Orçamento (Planejamento) está debaixo de um mesmo ministro, e se os militares caem no conto dos cortes daquilo que não afeta o bolso de suas pessoas físicas (qual seja, preservem-se as boquinhas e cortem-se as rubricas de investimento), é óbvio que catástrofes como a de Manaus vão acontecer. Estar no poder significa peitar os “babaquinhas”, como bem os definiu Mendonção, na hora que for necessário. Mas agora Inês é morta, bem como a reputação do EB e sabe-se lá quantas pessoas foram e serão. Um século depois da Missão Francesa, a “Missão Austro-húngara” – meso-(neo)liberalismo Monte Pelerin desenfreado, meso-obscurantismo Orban – desconstrói o país e as forças armadas, qualificando-as para um desempenho austro-húngaro na primeira grande guerra do século XXI. “Missão dada é missão cumprida”, não é capitão?

Os meses que vêm serão muito complicados. Cuidado com soluções rápidas, cuidado em não serem histéricos, cuidado com as encenações deste Governo, dos deep states daqui e de fora, cuidado com as plataformas. O banimento do Parler pela Amazon mostra o quão inseguro é ter seus sistemas na mão de outra empresa, de outro governo. A Clowd está morta para quem não se acha imune, e as soluções financeiras de crypto seguirão pelo mesmo caminho no devido momento.

Quanto ao atual governo, repetindo a imagem que já usei noutro artigo, este país é um grande Nakatomi Plaza sob o controle de um pessoal armado com propostas absurdas. Não tenhamos ilusão sobre para o que eles realmente estão ali. 

Mas agora não mais
Encouraçado nos meus agasalhos
Nesta vaguíssima avenida
mas vendo um jogo de futebol
Nesta lentíssima espreguiçadeira
No seio desta tarde confortável
da segunda semana de janeiro, me despeço.

PS: os colegas que quiserem se comunicar comigo podem, a partir de agora, usar do meu gmail para isso, pmfalemdacarioca. Membro do Gabinete do Ócio, não contem comigo para atividades produtivas – mas estou sempre aberto a trocar ideias. E se me virem chegar ao Banco sem ser de crocs, ou é medalha ou cuidado! Se estiver cantando Bella ciao com uma maçã na mão é porque me tornei o signore sinistro, um jacobino imoderado no papel de comissário do PSOLTUdoB. Abraços! 

PS adicional: Quando escrevi ainda me referia a atual presidência de República como Governo e não como Regime. Mas breve será esse o termo que veremos no NYT. A situação do país é grave, a situação do Banco justifica sua inclusão no Acordo de Paris. Mas isso é outra história…

Associação dos
Funcionários do BNDES

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